quinta-feira, 1 de março de 2018

DIETA (ficção)

Se não há necessariamente uma hierarquia ontológica entre os diferentes entes, se basta que um ser se denomine ou seja denominado “humano” para que ele assim seja entendido, por que há, então, uma diferença entre o tratamento que damos para cada um dos seres? Para usar um exemplo fácil: por que comemos alguns bichos e outros não? Sendo radical dá para perguntar: por que o canibalismo é um tabu para a sociedade ocidental moderna? Por que somos condicionados a ter pena de determinados animais e encaramos outros apenas como combustível matável? (Para ficarmos apenas no eixo especista.) 

Tenho para mim que há uma ligação direta entre essa fixação pela carne como o principal alimento possível, uma espécie de santo graal em forma de comida, em que na ausência o almoço não estaria completo, e um modo de vida que não abre mão de nenhum conforto, que não se coloca em questão aguda sobre qualquer situação já assentada, ou tem respostas prontas e rápidas para as dolorosas dúvidas, que podem aparecer sem serem convidadas, um modo de ser que acredita que não se precisa mudar nada. Gente que pratica o que eu costumo chamar de um comportamento alfa-elitista.

Não me esqueço que durante séculos o consumo de carne era reservado apenas para a aristocracia, e todo o restante da plebe deveria se contentar com nacos – quando muito – de animais. Apenas no século XX, e ainda assim, apenas para os países que conseguiram ultrapassar a barreira da miséria generalizada e formar um contingente razoável de uma classe-média que poderia ser universal (mesmo que esses mesmos países mantenham bolsões de pobreza, que parecem mais a regra que a exceção em sua organização social) apenas nesses países houve uma, hum, democratização do consumo de proteína animal. A carne, portanto, ainda carrega os traços de um passado que era vista como a exceção, o mais caro, uma iguaria. Mas qual foi o custo dessa popularização da carne?

Sejamos sinceros conosco mesmos: podemos comer carne todos os dias, e na quantidade que comemos? Pensemos na parte prática, que é tão valorizada hoje em dia. Para ter tanta carne, na pecuária extensiva, uma quantidade enorme de terra foi desmatada, para se transformar em pasto. Um universo de diversidade foi destruído para que tivéssemos apenas gramíneas com o único intuito de alimentar bovinos, caprinos, suínos. Ninguém se importa com planta, árvore, essas coisas, eu sei. É coisa de hippie. Mas pense em você, se você não se importa com nada mais além de si. Esse processo tem um impacto imenso no ciclo da água, acabando com as nascentes dos rios do mundo, mudando a quantidade e a frequência das chuvas, atingindo abastecimento de cidades, cada vez mais gigantescas. Quem paga a conta em primeiro lugar é a população mais pobre, como sempre. Mas quem se importa com os pobres, não é mesmo? O que as pessoas se esquecem é que, para aqueles que estão no topo do mundo – cada vez mais menos gente – quem não participa desse exclusivo clube é igual: pobre.

Isso sem mencionar os imensos desertos que se escondem atrás de monoculturas como milho ou, a pior, soja, para uso exclusivo de alimentação desses mesmos rebanhos, quando em criação intensiva – que mais se parece com campos de concentração. Geralmente usando matrizes transgênicas, pouco ou nada pesquisadas para saber o impacto que tem sobre a saúde. A desculpa é a necessidade de combater a fome. Mentira. O efeito desse processo só descobriremos no futuro, na prática, quando for tarde. Enquanto isso, agricultores familiares são apagados do mapa por não conseguirem competir com macroindústrias e seus fertilizantes geneticamente modificados e agrotóxicos, cada vez mais venenosos.

Mas o pior, para mim, nem é isso. Ou só isso. O que essa pessoa que participa do pensamento da elite-alfa nunca leva em consideração é o que eu chamo de metafísica da matança. Quando adotou uma dieta carnívora, o antepassado do ser humano conseguiu ganhos energéticos substanciais para modificar seu modo de ser. Agora ele tinha tempo para desenvolver outras ferramentas para dominar o próximo.

Não defendo voltarmos a viver nas cavernas, nos defendendo dos animais maiores com lanças, muito menos viver num mundo em que o dentista não tem anestesia. A atual desproporção de forças, porém, é assustadora. Causa um desequilíbrio que se reflete em todas as esferas. Veja o esgotamento completo da terra, e da Terra.

Isso tudo para dizer: quando foi que os animais se transformaram em seres matáveis? Em seres cuja única função do mundo é morrer para alimentar um bando de gente obesa que pensa no hambúrguer com uma volúpia pornográfica? Por pessoas cujo único prazer na vida é se empanturrar com qualquer moda gastronômica que se anunciar, para depois ter culpa, e vomitar tudo nas privadas, e pagar por tranquilidades em comprimidos, ou comprar novos corpos com cirurgias plásticas?

Outra vez podemos voltar para o tempo da invenção da agricultura, da domesticação de plantas selvagens para que se produzisse o que, onde e quando se quisesse. Claro que a semente da questão atual já estava plantada lá no primeiro agricultor, mas o que devemos prestar a atenção, me parece, é a diferença de intensidade. Se antes da modernidade, ou mesmo em sociedades não-ocidentalizadas, há um embate mais justo entre os diferentes atores, em que ao menos se olha no olho de quem vai morrer, agora, o homem dominou de tão maneira o outro, o distanciou, o sanitizou, o desmembrou, o transformou em apenas um produto entre outros nas prateleiras de supermercados. O grau de controle, hoje em dia, do mundo nos fez tornar o outro um mero acessório para as nossas intenções, desconsiderando completamente suas muitas possibilidades de ser. Ou se encaixa no nosso jeito, ou está fora. Há uma normalização da morte. Se chamarmos o que acontece nessas fábricas de proteína animal (o eufemismo é uma das faces desse covarde distanciamento) de genocídio, sempre haverá alguém para nos acusar de fazer comparações estapafúrdias. Quando é exatamente o que acontece ali. A morte industrial de populações inteiras, diariamente.

O mesmo processo que o rico homem branco, cis, heterossexual pratica com os demais humanos da escala social, retirando completamente suas possibilidades de ser, além daquelas pré-determinadas por eles próprios, que são os únicos que se consideram sujeitos da História, e que são os únicos que se autorizam a sujeitar os demais, sem reconhecer nos demais qualquer tipo de protagonismo, os humanos em geral praticam com os demais seres. Utilizam argumentos legítimos, mas de maneira torta, para se colocar numa posição de superioridade, olhando de cima para baixo, sem se perguntar quem lhe deu a autoridade para dizer que razão ou ciência são critérios válidos, e confirmar uma prática que corta qualquer possibilidade de existir além daquela a que ele está acostumado. Não pode se colocar em dúvida, a morte do outro é o certo, o correto. A minha gula, travestida de apetite, deve ser saciada, independentemente do custo disso. Todo um esquema, um formato de pensamento se concretiza ao redor dessas verdades, que não podem ser jamais colocadas em questão. É contra isso que eu me revolto.

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