quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

'Triste fim de Policarpo Quaresma' - trecho

Olga pôde ver tudo isso bem à vontade, andando de um para outro lado, porque a filha do presidente era de um silêncio de túmulo e o pai desta tomava com o seu marido informações sobre novidades medicinais: Como se cura hoje erisipela? Ainda se usa muito o tártaro emético? O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros idéia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que ao redor dessas casas não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda a parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um pouco algumas cousas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remédio. Aquilo era uma situação do camponês da Idade Média e começo da nossa: era o famoso animal de La Bruyère que tinha face humana e voz articulada...
Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. A faina do roçado ia quase no fim; o grande trato da terra estava quase inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a colina que formava a lombada do sítio. Olga encontrou o camarada cá embaixo, cortando a machado as madeiras mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as folhas caídas. Ela lhe falou:
- Bons-dias, “sá dona”.
- Então trabalha-se muito, Felizardo?
- O que se pode.
- Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo?
- É doutra banda, na estrada da vila.
- É grande o sítio de você?
-Tem alguma terra, sim, senhora, “sá dona”.
- Você por que não planta para você?
- “Quá, sá dona!” O que é que a gente come?
- O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
- “Sá dona tá” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá
dona”, não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou; colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o
machado, ainda disse:
- Terra não é nossa... E “frumiga”?... Nós não “tem” ferramenta... isso é bom para italiano ou “alamão”, que o governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne escuro começava a aparecer.
Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patrícios.
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas, com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses latifúndios
inúteis e improdutivos? A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava.
Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquele perdera um pouco da sua morgue; havia mesmo ocasião em que era até natural. Quando ela chegou, o padrinho exclamava:
- Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal idéia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo!
- Mas se esgotam, major, observou o doutor.
Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometeu-se na conversa:
- Que zanga é essa, padrinho?
- É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de adubos... Isto é até uma injúria!
- Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos...
- Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão, não queria aprender música... Qual música! Qual nada! A inspiração basta!... Hoje vejo que é preciso... É assim, resumia ele.
Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a força d’alma:
- Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem-dotado e as suas terras não precisam “empréstimos” para dar sustento ao homem. Fique certo!
- Há mais férteis, major, avançou o doutor.
- Onde?
- Na Europa.
- Na Europa!
- Sim, na Europa. As terras negras da Rússia, por exemplo.
O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triunfante:
- O senhor não é patriota! Esses moços...

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

DESCARNAVAL

No empurra-empurra, no roça-roça
a massa avança num filme medieval 
a fantasia ‘tá na sua cabeça 
‘tá começando mais um carnaval
Lucas Santana e BaianaSystem

Nunca gostei de carnaval. Fruto de uma família conservadora que fazia um corte grosseiro entre o que era uma cultura aceitável a se consumir e outra que deveria ser desprezada, eu não fui exposto à festa quando criança. Bloco ou escola de samba? Dava no mesmo para meu pai: isso é coisa de viado e preto, dizia. Sim, além de machista, ele era homofóbico e racista.

No momento em que fiquei independente, acabei renegando tudo o que, aparentemente, meu pai representava para mim: fui fazer faculdade de geografia e me meti com um marxismo dos mais ortodoxos. Com pouco jogo de cintura, muita leitura torta da escola de Frankfurt, e um desejo de “politizar” as massas, continuei desprezando o carnaval e tudo o que ele representava, para mim. Era uma forma de alienar – ainda mais – os mais pobres, eu repetia na época. Minha aversão ao carnaval ainda iria piorar muito, antes de melhorar.

Ironicamente, me casei com uma foliã (que eu conheci numa festa de rock, deixemos claro). Empolgada e uma grande admiradora dos prazeres da vida – beber, dormir, comer, transar – Denise é médica e trabalha como poucos médicos, verdadeiramente preocupada com a saúde pública. Caso de talento que foi esculpido com muito esforço. Desse aspecto, não tenho nada a reclamar.

Ela fazia plantões pesados com uma frequência incomum e tinha pouquíssimo tempo livre. Trabalhava natais, réveillons, feriados, fins de semana, madrugadas. Somente uma data ela reservava como sagrada, tirava férias, pagava outros médicos o dinheiro que fosse para substituí-la. Pois.

Na época da faculdade, ia para Salvador. Na residência, foi para Olinda. Para comemorar o primeiro emprego, já completamente formada: Ouro Preto. Estabelecida, e nós morando em São Paulo, resolveu passar os carnavais no Rio. Inventava fantasias, contratava uma costureira, criava um mundo a povoar por quatro dias seguidos. Ela sumia, eu raramente a via nesse período. No início, viajava com ela e ficava no hotel a maior parte do tempo. No máximo ia ao cinema ou a uma livraria.

Ela sabia os horários dos blocos obrigatórios, comprava ingressos de camarote para a Sapucaí, aprendeu a tocar surdo. No primeiro ano, tentei, de cabeça aberta – juro! –, ir ao desfile. Queria saber o que tanto as pessoas gostavam dessa sucessão de pessoas com plumas e paetês, dançando ao som de tambores tocados numa velocidade alucinada. O resultado não poderia ter sido mais óbvio: aumentou consideravelmente a minha aversão ao carnaval.

Era, então, um escapismo para que as pessoas suportassem um modo de vida extremamente extenuante? Por que não se revoltar quotidianamente com essas obrigações que retiram nossas forças todos os dias? O carnaval era uma concessão, uma versão moderna do pão e do circo? Uma catarse – uma catarse coletiva? De certa forma, não estava totalmente errado, como iria perceber mais tarde.

Quando eu ainda viajava, ela chegava de madrugada, invariavelmente bêbada, ou completamente alucinada de não sei o que. Eu estava no quarto, com um humor completamente diferente do dela, e ela queria me contaminar. Não havia encontro possível. As brigas eram uma constante. Mesmo não sendo alguém inseguro normalmente, eu ficava extremamente desconfiado das histórias que ela contava, ou tentava contar, porque as palavras sempre se embolavam entre os dentes e a língua. Quando eu menos percebia, já estava repetindo palavras que havia escutado do meu pai, mesmo a contragosto.

Não queria cerceá-la, mas sentia na minha pele que havia uma injustiça, um desequilíbrio: só ela poderia “aproveitar”? Ela respondia que não me obrigava a ficar no hotel, muito menos a desgostar do carnaval. Ela estava certa. Eu queria que ela também não gostasse. Não era possível.

Acabamos decidindo que eu não iria mais para o Rio. Ela viajaria sozinha e voltaria na quarta-feira de cinzas. Funcionou razoavelmente bem na estreia. No ano seguinte, ela perdeu o avião de volta. Disse que havia conseguido uma fantasia para desfilar no domingo das campeãs e decidiu – sem me consultar – estender a estadia. Voltou na segunda, chegou atrasada ao trabalho, já dizendo que haveria outro bloco imperdível na semana seguinte. Os bloquinhos nos fins de semana se tornaram cada vez mais frequentes até que ela se mudou em definitivo para o Rio. Descobri, meses depois, que o nome do bloco era Márcio. Denise me amou por oito terças-feiras gordas mas não resistiu a duas pontes aéreas.

Não deve ser de espantar que essa série de desencontros tenha aumentado o meu ódio ao carnaval ao nível máximo. Eu espumava e, da minha maneira obsessiva, queria criar uma razão por meio da qual eu pudesse desqualificar essa adoração religiosa. Logo encontrei uma deixa: havia um vício nesse comportamento eufórico. Era uma tentativa desesperada de tapar o buraco interno da existência, com doses cavalares de uma conduta do exagero, que apenas aumentava o próprio buraco. Quanto mais euforia, era necessário mais euforia. O ciclo se retroalimentava, ininterruptamente. Havia uma dependência profunda, parecida com qualquer outra dependência: jogos, drogas, bebida, internet. Ninguém conseguia se afastar, a festa não podia acabar – literalmente. Qualquer movimento para fora desse formato era sinônimo de tristezas. Alturas menos altas já eram depressões. Prazeres eram instantâneos, fugazes e potentes.

Foi um período difícil para mim. Dizem que as desgraças adoram companhia. Nessa época, meu pai morreu.

(Respira.)

Eu não tinha qualquer proximidade com o meu pai desde que saíra de casa, no meio da faculdade, quando comecei a trabalhar. Ele havia se transformado numa figura que eu visitava duas vezes por ano. No aniversário e no natal. Às vezes, só no natal. Era alguém com quem eu só conversava sobre banalidades. Quando sabia que iria vê-lo, lia o jornal para poder falar de futebol – para termos algum assunto em comum. Para evitarmos cair em qualquer tema polêmico. Para não brigarmos bizarramente. Para não acabar com o encontro. Por minha mãe, aquela bendita mulher que aguentou todas as violências subliminares e as óbvias. Nunca vi meu pai batendo na minha mãe, mas não tenho certeza de que isso não aconteceu. Ainda mais quando saímos – eu e minha irmã, ela casando, por supuesto – de casa, e ele começou a beber com força. No natal, quando ele ficava bêbado e começava a tentar puxar assuntos complicados, eu trincava o meu maxilar, e ia embora, disfarçadamente. Ele ainda tentava fazer chacota de mim. Tentava me desafiar, como um garoto faz com outro, demonstrando sua (falta de) maturidade. Todos os assuntos, para ele, eram superficiais, com respostas prontas, com raciocínios unidimensionais, que lhe davam um conforto, uma segurança de estar certo. Era um homem com verdades, verdades mofadas, que nem a doença rápida que o fulminou lhe pôs em dúvida. Parecia duro, inquebrantável, um engenheiro civil que tinha orgulho da ordem, da organização, da família, e vários outros lugares-comuns. Eu me perguntava: como esse homem ainda pode ter algum tipo de ascensão sobre mim?

Após o enterro, minha mãe chamou a mim e a minha irmã para irmos para a casa dela. Ela passou um café e nos serviu com uma fatia do seu bolo de fubá. Fechei os olhos na primeira garfada e não contive o sorriso. Tinha gosto de saudade.

Olhávamos rapidamente para a minha mãe e ela parecia triste: quieta, vestida de preto, guardando um mistério. Mas, ao repararmos melhor, logo percebíamos um alívio transparecer. Até mesmo uma alegria. Discretas risadas. Um comentário levemente espirituoso sobre o bolo (“vou começar a vender o bolo da vovó Neide para ganhar um dinheirinho!”). Uma energia que não surgia nunca. Com o meu pai, ela estava sempre à disposição, agora, ela parecia disposta.

Num desses movimentos inéditos, ela sugeriu que abríssemos a caixa com fotos de meu pai. Nos entreolhamos, eu e minha irmã, e respondemos sem falar, por que não? Encontramos registros com o meu avô, outro sujeito conservador que impediu minha avó de trabalhar, simplesmente porque ela ganhava mais que ele; imagens do meu pai servindo no Exército; retrato dele com o Dom, seu pastor alemão de estimação, antes de eu nascer; jogando bola com os amigos, envergando a número 10; a camisa do seu Corinthians, autografado pelo Quaresma – um dos seus maiores orgulhos; uma foto do casamento dele com a minha mãe – os dois com semblantes fechados; um retrato com vários amigos num restaurante, parecia uma churrascaria, em que todos sorriam, menos ele; os inseparáveis óculos “aviador”; imagens de antes ainda de ele usar bigode; e uma foto que eu encontrei por acaso e me fez perder a respiração. Deixei o meu corpo cair, me encostando à cabeceira da cama, paralisado. Minha irmã reparou em seguida e me perguntou o que havia acontecido. Eu apenas virei a foto para ela e, ato reflexo, ela levou a mão à boca, arregalando ao mesmo tempo os olhos. Era o meu pai, bem novo, junto a um amigo, os dois vestidos de mulher, num baile de carnaval.

Decidi, naquele momento, que eu iria para o próximo o carnaval no Rio.

Minha mãe explicou que era uma foto que meu pai sempre renegava. Ele sorria, parecia feliz, despreocupado, se sentindo bem na própria pele. Foi uma festa em que meu pai tinha bebido demais e, incentivado por esse amigo, aceitou se fantasiar. Perdeu as censuras. Quem era esse amigo?, perguntei à minha mãe. Era Mauro, um amigo de infância do meu pai, de quem ele era muito próximo. O que tinha acontecido com Mauro? Se casara e se mudara para o Nordeste, Aracaju, parece. Minha mãe me mostra outras fotos antigas que eu não conhecia: meu pai sorrindo, meu pai com semblante mais leve, meu pai abraçando... Mauro.

Será que...? Meu pai...?

Quanto recalque, quantos sentimentos afogados em ressentimentos, em culpas, em normas tão rígidas, em obrigações sociais... Não importa, na verdade, o que aconteceu, o que meu pai sentia por Mauro – ou por homens em geral. O que vale é mais simples: meu pai poderia ter sido tão mais feliz. E, consequentemente, idem para a minha mãe, a minha mãezinha que sofreu tanto, e por tanto tempo com ele... – e para mim e minha irmã, também! Ele carregou esse sofrimento e, não sabendo lidar com a dor, a empurrava para os outros, diretamente na goela.

Não tive coragem de perguntar à minha mãe se ela desconfiava de alguma coisa. Não me interessava, e acho que ela também não pensava muito sobre isso. O que valia é que ela agora estava livre, ela poderia ser o que ela conseguisse. Depois de tantos anos nesta fôrma tão apertada, talvez ela nem conseguisse alçar altos voos, como um pássaro viciado nas distâncias da gaiola, mas já era possível vê-la mais leve. Ao menos, para começar, já era possível vê-la sorrindo.

Já eu, eu não deixaria essa oportunidade passar. Tentaria fazer de tudo para me libertar – por inteiro – do campo de gravidade do meu pai. Me abrir para o mundo, para as possibilidades que aparecem quando menos esperamos. O carnaval era perfeito para isso.

***

Cheguei amadoramente ao Rio, na sexta-feira, de manhã. Quem nunca frequentou o carnaval carioca – como eu – não sabe que é necessário um mínimo de planejamento. Os poucos restaurantes abertos ficam lotados. Os bancos protegem suas vidraças com tapumes. Poucos banheiros pelas ruas, guardas multando quem mija as paredes. Além disso, há uma quantidade impressionante de blocos de rua por toda a cidade. É necessário ter informações quase privilegiadas para fugir de furadas clássicas, que se vendem como tradicionais, e encontrar as verdadeiras gemas. Entrei em contato com Denise.

Não nos falávamos há tempos. Não havia mágoa por minha parte, para ser sincero. Essa distância era mais um orgulho ferido, uma sensação de superioridade por ter sido ela a cometer a falta. Enquanto ela não me pedisse desculpas, não se submetesse, eu não tinha vontade de falar com ela. Agora, seis meses após a morte do meu pai e quase um ano da nossa separação, achei que era mais uma das besteiras que eu vivia cultivando.

Ela se assustou com a minha mensagem, depois telefonema, e ainda mais com as minhas perguntas. Tentei tratar com a maior naturalidade o assunto, e ela, após um início de conversa em silêncio, correspondeu. Estava surpresa, mas, de alguma maneira, satisfeita. Como se percebesse que nós já éramos bem diferentes daqueles seres que nós fomos, quando casados, e que isso era bom. Ela não tentou me cobrar contas antigas nem tentou se meter na minha vida. Ela se mostrou uma amiga, uma amiga que já era quando estávamos juntos, compreensiva e prestativa.

Primeira incumbência: arranjar fantasias, ela disse. No plural. Nada de máscara de Stormtrooper comprada na banca de jornal. Se quiser se fantasiar de soldado do império de Guerra nas estrelas, que fizesse direito. E eu não sabia nem por onde começar. Ela disse que iria ao Saara, se eu quisesse acompanhá-la, era a oportunidade. Eu perguntei o que era o Saara e ela me respondeu: use roupas frescas.

Depois da imersão nas infernais ruelas do Centro da cidade, e de posse de quatro fantasias diferentes – nada extraordinariamente criativo, mas evitei o tapa-olho de pirata, por sugestão dela – ela me passou uma lista dos blocos imperdíveis. Eram muitos, em pontos diferentes da cidade. Exigia uma logística complicada. Para piorar, alguns eram secretos, outros não divulgavam a hora de saída, quiçá o seu trajeto. Era preciso me manter atualizado. Ela me incluiu em grupos de redes sociais. Para quem queria apenas a folia, se perder, ter experiências absolutamente descompromissadas, estava parecendo organização demais. Já era o meu primeiro aprendizado: o capitalismo já tinha chegado à sua última fronteira, à folia. O segundo movimento: havia um sentimento generalizado por parte das pessoas de estarem sempre perdendo alguma coisa. Agradeci a Denise e decidi fazer o meu carnaval sozinho, menos neuroticamente. Essa última parte, claro, só pensei.

Poderia descrever os blocos de sábado, fui a dois, mas eles não me empolgaram muito. Nem lembro os seus nomes. Aliás, não consigo lembrar o nome de nenhum, por motivos diferentes entre si (como se verá). O primeiro na Praça XV, bem cedo, parecia mais um show, só que sem qualquer pressão. Depois, fui para uma outra praça, da Harmonia, numa região mais degradada, e só lembro de como ficou lotado! As ruelas da região ficaram tão cheias que eu imaginei que poderia haver alguma tragédia. Alguém cair e ser pisoteado, sei lá. Era difícil até respirar. Não havia rota de fuga, mas consegui escapar na primeira esquina. Decidi ir embora considerando que não poderia piorar muito mais. No domingo, houve um bloco no Aterro do Flamengo. Grandioso, imenso, lotado, confuso. A música era melhor, mais a ver comigo – vários instrumentos de sopro, repertório variado, mais recente, mais internacional, mais pop, mas era difícil ficar próximo da banda. Ainda não tinha sido dessa vez. O fim de semana estava encerrado para mim. O carnaval aconteceu, de verdade, foi na segunda-feira.

Era um desses blocos secretos. Fim da tarde, início da noite. Denise insistiu que esse eu não deveria perder. Era o epítome da folia. Segundo Denise, eles não mantinham as informações em segredo por uma tentativa de evitar outros foliões, mas porque eles simplesmente eram tão desorganizados que jamais planejavam de antemão trajeto, dia ou hora. Eram uma bagunça. Tocavam mal. Não eram oficiais. Não tinham qualquer recurso. Raciocinei que não tinha como dar certo. Mas, ao mesmo tempo, tive uma intuição de que era esse o espírito que eu buscava no carnaval. Vesti a minha fantasia de marinheiro e fui para outra praça, dessa vez, da Cruz Vermelha.

Não houve surpresas: eles eram uma desordem completa. O cortejo caminhava praticamente de maneira aleatória, mas a multidão, mesmo com todos os indicativos em contrário, começou a engrossar o movimento, aos poucos. Aos poucos, também, comecei a perceber que havia algo próximo de um sentimento de anarquia em todas as pessoas ali. Passávamos por ruas esburacadas, pulávamos tapumes de obras, entrávamos em cercadinhos proibidos. Não havia limites físicos. O público aumentava e, dessa vez, parecia diferente dos dias anteriores. Em vez de querer fugir da multidão, eu queria ficar mais próximo dela. Não sabia muito ao certo por que, mas esse sentimento de liberdade, de poder fazer qualquer coisa, me deixava confortável. Parecia que eu não seria julgado. Tudo era permitido.

Nessa hora, no meio da minha elucubração automática – que me fez despertar, mas ao mesmo tempo me reinseriu no ambiente –, Denise passou por mim, junto a Márcio (finalmente o conheci) e falou: abre a boca. Sem pensar muito, deixando o corpo guiar os passos, coloquei a língua para fora. Ela colocou um pó extremamente amargo e disse apenas: engole. Eu, que não tomava qualquer droga desde a faculdade, tinha acabado de perder a virgindade com as sintéticas.

Talvez tenha sido a droga, talvez tenha sido o espírito de pertencimento, de liberdade geral, de permissividade, libertinagem mesmo, não sei. Só percebi que, em pouco tempo, sentia o bloco como um único grande corpo, inteiriço. Estávamos no Saara, afunilados, apertados, agora com as suas lojas fechadas, e o casario histórico mal iluminado aos pedaços servia de moldura. O bloco, naquele espaço, cerveja sendo bebida como se água fosse, era como a constituição de uma mesma matéria, as carnes desnudas se encostando, se movimentando no mesmo tom, o som reverberando os ossos, os músculos em flexões e distensões, destituindo aparências, exaltando as fantasias, em encaixes múltiplos, colos sobre colos, bundas, pernas, braços, paus, peitos, pescoços, rostos, cabelos, suores, danças sincronizadas, numa inteligência coletiva, que eliminava o individual, levando para um instante exatamente anterior, sem cair numa massa amorfa, com tensos encontros de vontades múltiplas que canalizavam a direção e o sentido do bloco inteiro. Andávamos sem saber o destino de antemão, mas com certeza de que estávamos certos, todos, juntos, em uníssono, em aclamação, numa decisão que saía da esfera do um e era partilhada, com os corações emitindo ondas magnéticas concomitantemente, sístoles e diástoles em coro, os corpos encostando em quatro, cinco, seis pessoas ao mesmo tempo, perdendo os limites e se diluindo. Era sensual, erótico, e era também agressivo, violento, potente, poderoso, hipnotizador.

Saímos na Uruguaiana e o bloco parecia a foz de um rio em pressão, com tanta gente saindo de um canal curto numa área expandida. A partir de então entramos num ambiente onírico, com o céu escuro e esfumaçado pela poluição do Centro, com as luzes de mercúrio fracas, dando uma tonalidade avermelhada, que manteve para mim um cenário de proibido, de perigos, de limites. Enquanto algumas pessoas queriam fazer algo além, que ultrapassasse – subindo postes, escalando bancas de jornais, dançando no meio da Presidente Vargas, deitando no chão, dando beijos triplos, quádruplos, indo para as ruelas escuras e transando ali mesmo – eu vi um invulgar encontro em frente a uma das igrejas da região, que me retirou daquele momento, para depois me devolver diferente. Um grupo de seis Zé Pelintras, todos vestidos com indefectíveis ternos brancos, camisas brancas empertigadas, e brilhosas gravatas e lenços vermelhos, malandramente conversava nas escadas, quando um sujeito alto trajando as humildes vestes de são Francisco de Assis, com direito a corte de cabelo típico, se aproximou e pediu a benção. Havia uma metáfora ali. Havia um mistério por trás daquele encontro que me capturou completamente. Mergulhei em mim para tentar decifrá-la. Um encontro de mundos, uma passagem de um lado para o outro, um convite a uma transcendência, mas uma transcendência mundana, material, da maneira mais profana possível. A certeza que a imanência pode ser tão catártica quanto as mais obscuras fés. Que liberasse as censuras e os espíritos ruins junto ao suor que escorria e fazia os corpos brilharem.

Estava perdido nos meus pensamentos quando Denise me resgatou. O bloco continuava. O rumo ainda não estava certo, mas não podia parar. Atravessamos a Presidente Vargas, entramos na Rio Branco, ambas avenidas largas, que permitiam a evolução mais solta, menos comprimida, e chegamos a outra praça: Mauá. No cortejo, um bando de fantasias se desfazendo, esfarrapados, maquiagem derretendo, tintas e purpurinas espalhadas desarmonicamente, uma procissão pagã de Brancaleone. À nossa frente, o Museu do Amanhã, aquele imenso prédio em formato de barata, imponente, com luzes gigantescas, brancas. Um prédio criado no momento em que a cidade era saqueada pelos e para os chamados grandes eventos. Um museu construído por um conglomerado midiático que controla metade da audiência do país há mais de meio século. Uma família que quer se infiltrar na construção do nosso passado e estender suas mãos para dominar também o futuro. Ninguém combinou nada. Pareceu apenas o que nós deveríamos fazer. Esse exército de maltrapilhos manteve o bloco em vanguarda e, pulando grade após grade, invadiu o saguão do prédio. Eram 500, mil pessoas, 2 mil, ninguém contou, todos dentro do prédio principal, pulando e dançando e cantando, ao som da banda mequetrefe, sob o olhar paralisado dos poucos seguranças que foram pegos de surpresa e não sabiam o que fazer. Estávamos ali dentro todos juntos: ambulantes, moradores de rua, bêbados, drogados, garotos e garotas de classe média, ricos, pretos, brancos, mulatos, gays, héteros, todos juntos, sem barreiras que separassem e impedissem a mistura, sem pré-determinações, apenas se esbaldando.

Durou pouco tempo. Logo, a polícia apareceu e tivemos que sair, sob o risco de sermos todos presos. Os policiais foram gentis, esperaram até o último retardatário escapulir para depois montar guarda em frente ao prédio intimidante. Algumas pessoas, eu incluído, ainda tentaram se refrescar um pouco no espelho d’água que circunda a construção. Uns músicos continuaram a tocar, de maneira ainda mais tosca. Eu olhei em volta, vi a dispersão, o clima de relaxamento pós-auge, e percebi que tinha chegado ao fim. Por aquele dia.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O fim do formato romance

O escritor Bráulio Tavares recentemente relembrou de uma frase de George Orwell sobre Charles Dickens, mas que dá um bom panorama não apenas sobre o autor inglês, mas sobre vários romancistas folhetinescos do século XIX [como o próprio Bráulio ressalta, aliás]: "He is all fragments, all details—rotten architecture, but wonderful gargoyles". O texto inteiro do Bráulio [de 2004] fala sobre como o romance, como obra artística de um período específico, tinha uma característica em comum: era deveras irregular. O que ele não acrescentou - e eu tomo a liberdade de dialogar com ele - é: como, aliás, é a vida.

Em seguida, me peguei pensando: quando foi a última vez que tinha me dedicado à leitura, como a minha principal atividade do dia[-a-dia]? Eu, que quero me ocupar pela vida à frente exatamente do outro lado do balcão [a escrita], eu que [pareço que] prezo tanto pelas leituras em geral, eu que aparento [segundo dizem] tanto um desses personagens prontos, instantâneos? Não lembrava. A literatura havia se tornado um apêndice da minha própria trajetória. O mergulho dentro de uma obra - com suas qualidades e seus defeitos, com suas genialidades e seus buracos, com sua arquitetura estragada, mas com suas maravilhosas gárgulas - havia se transformado em um efeito lateral, colateral. Quando dava tempo. Quando não estava fazendo mais nada. Quando não tinha mais nada interessante. Ou mais interessante. Ou simplesmente interessante.

Uma das razões para isso, suspeito, seja o "tempo" diferente da literatura. É necessário uma concentração, uma atenção, um mergulho e um desligamento do seu entorno que não condiz com o nosso momento histórico. Os arcos narrativos de um romance são longos, às vezes cheios de ruas sem-saída [a arquitetura estragada], para poucos instantes de genialidade [as gárgulas maravilhosas] - isso a depender da qualidade do livro, claro. A literatura não dá, necessariamente, respostas imediatas. Não alimenta nossas fábricas de químicas do prazer súbito, de pílulas de euforias. A literatura é mais "lenta", menos óbvia, é mais "trabalhosa". Exige um esforço, não quer interlocutores passivos, que só recebem e são maravilhados. É necessário uma vontade, uma força, um exercício até mesmo físico.

Mesmo que a divisão natureza x cultura seja fadada ao fracasso, e, por si só, uma artificialidade, poderíamos pensar essa questão como uma metáfora apenas: a literatura é a menos "natural" das produções com intuito artístico. É necessário aprender uma técnica - a leitura - mesmo para apenas apreciá-la, da maneira como ela foi concebida. Pode-se pensar que há, como sempre houve, contadores de histórias, grandes narradores orais - mas essa não é a forma como a literatura foi pensada, ao menos nos últimos 200, 250 anos. Literatura, para os escritores, suponho, é um movimento individual, único, de pouca possibilidade de compartilhamento. É para ser lida, só, sozinho[a].

Claro que se lê hoje muito mais - em quantidade - que em qualquer outro momento histórico da irregular história desse irregular [geograficamente falando] Ocidente. Somos abastecidos por textões em redes sociais sobre todos os assuntos da moda. Corremos atrás da opinião de x, y ou z para saber como devemos nos posicionar sobre a polêmica do momento, criamos frágeis verdades e defendemos nossos pontos com memes, gifs animadas e escrachos, e citações de autores famosos lidos como ferramentas, de maneira utilitárias. Lê-se, sim, até se lê, mesmo, e até em profundidade, mas lê-se sempre com um fim, com um objetivo em mente. Lê-se, na hipótese mais parecida, para ocupar o espaço vazio que insiste em aparecer quando não estamos surfando uma das ondas eufóricas.

O romance - e eu nem defendo aqui sua superioridade, ao contrário - mexe com outras químicas: trabalha-se pela tranquilidade, mesmo quando o seu tema é dos mais apreensivos; com a empatia, apesar dos personagens detestáveis; com o aprofundamento das relações, ainda que pareça improvável. O romance é de outro tempo. Não é ágil, não tem necessariamente uma sacada, não pode ser sempre resumido. O romance não tem uma arquitetura impecável, não é obviamente sagaz, não pisca o olho mostrando o quão inteligente, não sublinha todas as suas tiradas geniais. É mais calmo, menos agitado, mais a cara da vida real. Mas de uma outra época.

Dito isso: que livro enorme [em todos os sentidos] é Os irmãos Karamázov!