quarta-feira, 22 de novembro de 2017

As dobras do tempo 'No instante agora'

Talvez a cena mais didática de “No instante agora” (finalmente vi!) para nós, órfãos de esquerda, seja a da grande manifestação pró-De Gaulle, logo em junho (acho que foi logo em junho).

O velho general tinha se manifestado durante o maio, pela televisão, e tinha sido engolido pela força dos acontecimentos do momento. Em junho (?), quando as ruas tinham se acalmado um pouco, ele decidiu falar apenas pelo rádio, veículo que ele conhecia muito bem, desde os seus discursos (desde Londres) na segunda guerra, que ajudaram a manter o moral dos franceses invadidos pelos nazistas. Ele exige a volta da ordem no país. Ameaça usar (ainda mais) da violência contra o caos, para manter o país unido, para seguir a constituição, para fazer da França a França, novamente.

No dia seguinte, uma multidão - maior em número que os próprios protestos dos eventos de maio - vestindo roupas nitidamente mais caras, enrolados em bandeiras tricolores, invade as mais famosas ruas da capital francesa para apoiar o discurso do presidente, e não recebe qualquer impedimento das forças de segurança - mesmo atrapalhando o trânsito, entrando em monumentos públicos.

O paralelo é óbvio demais para nós para não me abalar. Sempre ouvimos que a direita ganha as eleições depois de 1968, mas ver as imagens tão nítidas de um movimento conservador em marcha, após tamanha explosão de possibilidades potentes, é bastante pedagógico. Ainda mais para nós, que parecemos em geral perdidos dentro de um ethos melancólico. É confortante encontrar companhia histórica (de vez em quando).

Após o filme, fica a pergunta óbvia: a “direita” então venceu a disputa de maio de 1968? Se pensarmos no curto prazo, certamente. Eles eram maioria, ganharam as eleições, apoiaram a reação. Se pensarmos pelo viés dos próprios soixante-huitards na época, também: eles queriam uma revolução, uma mudança completa da forma de vida, manter o ritmo de transformações para sempre, numa agenda de desejos polifônicos sem mira certeira. Não era possível acertar em tudo, por supuesto. A derrota é, portanto, pelo tamanho da expectativa. Mas alguma coisa ali, sem sombra de dúvida, havia mudado profundamente. Se transformado tanto e de tal modo que não tinha como nem De Gaulle nem manifestações patrióticas segurarem sua força. O tempo já era outro, para todos.

Ps. Isso não quer dizer que devemos deitar em berço esplêndido - ao contrário. Temos que pensar que a luta é constante e sem interrupção. Temos que diversificar nossas estratégias. Como? Não tenho a mais ligeira ideia. Temos que também nos tranquilizar com os momentos de potência, para depois colocar em ação.
Ps2. Curiosamente, dois dos marcos mais famosos da esquerda no século XX distam cerca de 50 anos um do outro: 1917, 1968. Curiosamente, 2, estamos completando 50 anos do último.
Ps3. Talvez 2013 tenha sido a nossa dobra na História. Certo é que já mudamos de percepções. É o momento de nos adaptar aos novos tempos.
Outro detalhe curioso: João Moreira Salles, diretor, roteirista e narrador do filme, lembra que a cena da manifestação da direita quase não aparece nos filmes sobre o período. Nós escolhemos o que vamos contar do nosso passado.
Ainda: Sobre melancolia e esquerda: http://criseecritica.org/.../11/Uma-ou-duas-melancolias.pdf

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