domingo, 18 de dezembro de 2016

Dataism

Na famosa entrevista para "Der Spiegel", Heidegger reforça um argumento seu, já então bastante batido, de que a filosofia, como ele a entendia, teria chegado ao seu fim [em ambos os sentidos: de término e de atingir o objetivo] e que não daria mais conta das questões contemporâneas. Ele elenca como esse modo de pensamento teria se dividido em vários outros, como a Psicologia, a Lógica, a Politologia. É o desespero dos entrevistadores que queriam uma resposta, no mínimo semi-pronta, para questões contemporâneas. "E quem ocupa agora o posto da Filosofia?", eles perguntam, tentando tirar algo mais substancioso: "A Cibernética", responde Heidegger. Estávamos em 1966.

Essa resposta está dentro de um grande pensamento heideggeriano sobre o que ele, no segundo momento da sua produção intelectual, chamou de Técnica [Technik, no original], que vai além das coisas técnicas. [Aliás, uma curiosidade: cibernética vem do grego kybernetiké, que pode ser traduzido por "Arte [techné] de pilotar".]

Técnica, para Heidegger, não era o conjunto de objetos técnicos, de gadgets, de aparelhinhos que compramos no Natal para dar de presente para o sobrinho, nem mesmo a habilidade que aperfeiçoamos em determinado métier, como futebol, violino, dirigir, ou cirurgia do coração. Seria um sistema que organiza todas as nossas formas de agir, de raciocinar, de, enfim, ser, que teria se tornado hegemônico em todas as sociedades ocidentais contemporâneas - mesmo aquelas que não ficam no ocidente geográfico.

Esse sistema consiste em mostrar como todas as coisas foram transformadas em apenas elementos que são requisitados pelo próprio sistema com o único fim de manter a máquina do mundo funcionando, no menor custo, tempo e esforço e com a maior produtividade. Mesmo que não haja um grande piloto a comandar tudo, nem mesmo uma reunião de donos do mundo [apesar da tendência de acharmos o inverso], o objetivo é fazer sempre mais com menos, o máximo com o mínimo, quase tudo com quase nada. Todas as coisas que não se encaixam nesse objetivo único, como, sei lá, ler poesia, observar o pôr-do-sol, tomar chá pelo gosto do chá, ou mesmo estudar filosofia, são descartadas - ou completamente absorvidas por essa lógica. Poesia se torna boa para aumentar nosso vocabulário; observar o pôr-do-sol mostra sua capacidade estética ou sua sensibilidade; chá é bom para relaxar ou acordar. Todas atividades boas para aumentar nossa produtividade, que é o que o importa para a Técnica.

Cinquenta anos depois, o historiador Yuval Noah Harari, autor de "Sapiens", best-seller do "New York Times" quando lançado, em que analisa o passado que trouxe aquele primata estranho até o atual momento, publicou "Homo Deus", em que ele muda de lado sua lente de aumento e aponta para o futuro, para sugerir alguns prognósticos sobre os caminhos que vamos tomar a partir de agora.

Apesar de ser um autor extremamente neoliberal [defende abertamente o mercado como única forma possível de se viver bem], e de alguns escorregões que me fizeram duvidar de suas credenciais como historiador [quando ele coloca nas costas do comunismo todos os problemas da URSS ou da atual China, por exemplo], suas apostas para o futuro acendem a luz laranja.

Um dos pontos altos em seu livro [para alguém como eu, que acha que a metafísica é, feliz ou infelizmente, indispensável] é chamar de "religião" todos arcabouços de pensamento que sustentam o nosso modo de ser em sua totalidade, mesmo que essa "religião" seja o humanismo, ou suas subdivisões, como o que ele chama de liberalismo, socialismo ou darwinismo [cujo ponto mais sombrio seria o Nazismo]. Nesse sentido, a Técnica, identificada por Heidegger, seria também uma "religião". Ou mesmo a ciência, pensada aqui como modo de justificativa para nosso modo de ser. "Religião", portanto, seria o nosso "fundamento", onde nos apoiamos para decidir o caminho que vamos tomar para conseguir nos decidir. Metafísica, em lato sensu.

Ele sugere que o liberalismo, um outro nome para a democracia capitalista nos países ricos, teria "vencido" a guerra fria por, entre outras razões, saber lidar melhor com os dados que o mundo se-nos apresenta diariamente. Mas que esse tipo de "religião" não daria mais conta de um mundo em que somos soterrados diariamente por uma quantidade absurda e exponencial de informação. Para lidar com esse novo paradigma, ele imagina que haverá - ou já há - uma nova "religião": Dataism [algo como Dadoísmo, a junção de "dados" com o sufixo "ismo", que se refere a doutrinas, sistemas, tendências etc.].

É um fato: não damos conta de tudo o que acontece [se é que um dia demos - lembrar que o verso "quem lê tanta notícia?" foi publicado em 1968]. Mas se não é uma questão de qualidade [como se um dia mudamos a nossa característica de "dar conta" das coisas para agora não dar], a quantidade é tão avassaladoramente maior, que quase torna essa característica uma outra coisa. Ou seja, a quantidade é tão de outra ordem que as regras aqui parecem precisar mudar completamente [pensar em mecânica quântica].

Para dar um exemplo de como vivemos em uma constante avalanche de informações, basta tentar lembrar para qual assunto espinhoso e extremamente relevante para nossa vida e para o mundo conseguimos dar nossa atenção nessa última semana: À reforma do ensino médio? À PEC que congela os gastos da saúde e educação por 20 anos? Às denúncias e aos apelidos da Odebrecht? À Lava [a] Jato? Às operações da PF? À crise política econômica fluminense? Às chicanas políticas de Renan et caterva? Ao golpimpeachment? Ao Temer? Ao Trump? Ao Putin? À Allepo? Ao Iraque? À China?

Isso só para ficar nas questões de cunho político mais estrito. Nossos sentidos estão tão abertos a vários e intensos estímulos que impulsos de outras frequências não são nem mesmo captados por nós [ouvi a expressão "Compassion fatigue" - e ela se aplica aqui bem]. Eu fiz de tudo para não saber nada sobre a Síria nesse momento. Não estava dando conta.

O que era incomum - a alta quantidade de notícias - se tornou abundante, exponencial. Estamos ainda na Modernidade, mas em seu fim, no seu extremo fim. Esses dados, que sempre existiram, só podem agora serem lidos por uma inteligência que as processa sem, hum, "pensar" muito. Isto é, que não coloca todas as informações em perspectiva, que não analisa cada uma das questões, a cada momento, que não tem sua atenção desviada com outro assunto no meio da análise. Os humanos não dão mais conta disso. [Não me surpreende que o Transtorno de Déficit de Atenção seja um dos principais problemas entre as crianças. E que a Ritalina se tome no lugar da jujuba hoje em dia.]

O que Harari sugere - e não somente ele -  é que os algoritmos vão tomar conta de nossas decisões a partir de agora. Abastecidos por essa quantidade de informações incomensuravelmente crescente, eles , e só eles, conseguirão processá-las para, a partir de cálculos matemáticos-probabilísticos, dizer qual é a solução "correta". Saímos da verdade divina, passamos pela certeza científica e chegamos às probabilidades técnicas.

Em uma bifurcação, os algoritmos vasculharão todas as informações já publicadas sobre a estrada e descobrirão qual é a melhor forma de se evitar engarrafamentos e chegar o mais rapidamente ao destino. É uma decisão fria, distante, pragmática.

 A democracia representativa perde um pouco de sentido. Não precisaremos mais votar em candidatos: eles seriam colocados no poder a partir da análise de suas biografias, que utilizariam os critérios das últimas pesquisas e artigos científicos publicados para propor quem é o mais apto ao cargo. Aliás, talvez nem precisaríamos de políticos, já que todas as decisões poderiam ser feitas a partir desse mesmo critério: os algoritmos avaliariam os prós e contras de cada uma das bifurcações e optariam, instantaneamente, por um dos caminhos, pelo melhor caminho, cientificamente comprovado, estatisticamente mais produtivo. O único objetivo é seguir em frente, rumo a uma sociedade cada vez mais perfeita - portanto, cada vez menos "humana".

"Humano" aqui é o que eu chamo de nossa capacidade exatamente de nos reter em um determinado assunto e refletir sobre ele, sem exatamente chegar a alguma conclusão definitiva. O que Heidegger chama, grosso modo, de pensamento - daí que o polêmico filósofo alemão falava que a ciência não pensava, mas apenas respondia a estímulos. E, fazendo uma comparação ainda mais controversa, o que Harari chamaria de "consciência".

Mesmo que os computadores tenham cada vez mais capacidade de processar teradados em alta velocidade, essa inteligência não teria necessariamente consciência. Apesar dos grandes avanços da neurociência e da biologia, ainda não se sabe como nasce ou nasceu a consciência; foi a junção de uma alta capacidade de processamento de dados? Foi a nossa constante capacidade de autoquestionamento? Por que precisamos nos questionar tanto? O questionamento pode até ter tido alguma função evolucionista no passado: mas ela ainda teria num mundo em que os algoritmos resolveriam nossas dúvidas?

Podemos ainda dizer que há uma necessidade de cientistas em programar esses algoritmos, portanto os humanos não teriam se tornado obsoletos. Isso, entretanto, vale por pouco tempo: conforme a Inteligência Artificial avança, os computadores entendem cada vez mais sozinhos o que devem fazer, a partir, simplesmente, do mergulho no universo praticamente infinito de dados - como mostra esse artigo da "Economist", por exemplo.

Com o fim da privacidade, forneceremos ainda mais dados biométricos, bioquímicos etc. Em pouco tempo, as próprias máquinas poderão também, por que não?, produzir seus próprios dados a partir dos estudos comparativos [há casos como o de David Cope, para citar um, que criou um algoritmo que produz música e haikus sozinhos, ao entender como funcionavam os formatos já estabelecidos]. Os humanos nos transformaremos, enfim, em apenas uma coleção de dados para a leitura desses algoritmos que produzirão e reproduzirão nosso mundo. Por isso que a filosofia não dá mais conta das nossas questões, segundo Heidegger.

Não sei bem o que pensar sobre isso.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Expurgo

Desde que eu moro no meu prédio, há mais de uma década, senti uma buena onda [como dizem os hispano-hablantes] em Jorge, o porteiro da manhã. É um sujeito de um coração enorme, sempre querendo ajudar quando eu preciso, muito além das suas funções. Quando voltei de Londres, por exemplo, após um ano fora, ele saiu do seu lugar para me dar um abraço. Claro que eu chorei.
Assim que me mudei, uma das primeiras perguntas dele foi: qual é o seu time? Essa foi a deixa para termos a mesma conversa, com pouquíssimas variações, todos os dias que eu passo na portaria: "e o seu Fluminense? Perdeu de novo!", ele me sacaneia. E eu respondo: "Mas o seu Flamengo está horrível também, hein!".
Eu, que não sei o nome nem do técnico tricolor direito, senti algumas vezes que deveria ler, um pouco que seja, a editoria de esportes para ter o que conversar com ele.
Como às vezes não consigo acompanhar o futebol [ainda mais em tempos de 7a1], eu já tentei mudar de assunto para diversos caminhos: política [silêncio], esportes em geral [nada], até a seleção brasileira, pré-hecatombe da Copa, mereceu apenas comentários sem qualquer empolgação.
A única vez que Jorge, nesses mais de dez anos morando no mesmo endereço, falou de outro assunto que não o Fla x Flu diário foi nesse desastre da Chapecoense. Além de mostrar sua tristeza, apontou a revolta contra os culpados pelas mortes de gente inocente: "Você viu que foi falta de combustível?!". Eu, que devo ter ido umas três vezes no Maracanã na vida, pude, na prática, entender finalmente o tamanho e a força dessa calamidade.
Que consigamos passar por essa tragédia como os gregos passavam pelas suas versões originais, como uma catarse [no sentido grego, de "kátharsis", "expurgo"]. Que esse seja o momento de virada para um país inteiro que está revoltado contra os culpados pelas mortes de tanta gente inocente.

sábado, 19 de novembro de 2016

Como fazer a coisa certa?

Não sou grande fã de Spike Lee. Acho obras como "Malcom X" excepcionais, com a sua cinebiografia de um líder negro que aceitava a violência como parte integrante das negociações de poder, em vez de achar que as coisas cairão dos céus porque você se comportou bem, de acordo com as expectativas dos mais fortes.

Ele não mantém, contudo, uma regularidade para me fazer ir ao cinema todas as vezes que lança um novo filme - coisa que acontece com Woody Allen e Martin Scorsese, por exemplo, para ficar só com os nova-iorquinos [na verdade Spike Lee nasceu em Atlanta, mas seus filmes são tão ligados a NY que não dá para dissociá-los].

De qualquer forma, sua obra principal, "Do the right thing", tem ao menos uma cena memorável - e que diz muito sobre o nosso momento histórico. O longa tem aquele clima de retratar o berço da cultura hip-hop, mostrando quase num clima documentário o lado menos conhecido da cidade mais conhecida dos EUA. Sempre achei que faltava, ironicamente, ritmo, no seu início, mais puxado para a comédia de costumes. Depois, há o aumento da temperatura (no sentido metafórico e no literal) que culmina na cena clímax do longa. Para mim, a maior esfinge da obra dele, que eu até hoje não consegui decifrar completamente, o que demonstra todo o seu poder.

No filme, além de dirigir, escrever e atuar, Spike Lee é Mookie, um entregador de pizza que trabalha para o ítalo-americano Sal (Danny Aiello) e convive com seu filho racista Pino (John Turturro). Mookie é um sujeito muito tranquilo, sem muitas ambições, que não tem problemas de relacionamento com os italianos da área, mesmo com todos os poréns.

Ele se identifica com os negros, mas não é um grande partidário de qualquer movimento mais organizado. De certa forma, ele funciona como o elo que conecta os dois lados do bairro. É quem consegue se dar razoavelmente bem com os brancos e vive como os negros. Um sujeito quase híbrido - quase. Com essa facilidade em circular entre os diferentes, Mookie se torna uma espécie de válvula de escape de ambos os lados, o amortecedor de todas as tensões. Até que ele começa a comprar o barulho dos negros.

Encurtando uma trama razoavelmente longa: há uma crescimento da tensão durante o filme e os negros se enfurecem com os italianos e resolvem protestar em frente à pizzaria de Sal. Mookie, que sempre foi razoavelmente tranquilo, está completamente fora de si porque um de seus amigos acabara de morrer enforcado por policiais. Esfrega o rosto na tentativa de encontrar a resposta correta, enquanto os negros e os italianos discutem arduamente, sem tomar uma atitude mais direta.

Sal não é "culpado" de absolutamente nada. Não fez nada que possa ser visto, pelas leis, pelos códigos oficiais, como alguém que merecesse receber qualquer tipo de punição. Ele é o homem que estava há décadas na área, empregando gente do bairro, sempre se posicionando de maneira razoavelmente correta. Sal não era um problema, no sentido mais estrito da questão.

Ali, porém, Sal não era mais apenas Sal. Mookie não era mais somente Mookie. Eles se transformam em símbolos, vão além de suas próprias individualidades. Sal representa a opressão, a hegemonia, o andar de cima que insiste em pisar no de baixo. Mookie, que tinha sido um sujeito que passava panos-quentes em todas as questões desde o início do filme, decide então jogar uma lixeira na janela da pizzaria de Sal. Os negros aproveitam que o pavio tinha sido aceso e pilham o lugar. Era um pedido de reparação histórica.

Dá um confere na cena:


Sempre imaginei que o nome do filme tinha a ver com essa cena. Mas como "fazer a coisa certa" se Sal estava sendo punido por nenhum crime seu? Como o "certo" pode ser quebrar a lei, destruir o patrimônio alheio - ser um "vândalo"? Como o certo pode ser, em resumo, o "errado"?

 A cena é impressionante exatamente porque é amoral. Porque mostra que há momentos em que fazemos o certo por linhas tortas. Que é necessário quebrar algumas regras para que todos sejam respeitados por estas mesmas regras. A cena é grandiosa porque tem várias pontas soltas, várias questões não resolvidas, várias motivações que podem ser contestadas.

Eu, que sempre fui um adolescente muito certinho, fiquei chocado com essa mudança de posição do personagem quando a vi pela primeira vez. Como entender o protagonista bonzinho tomando uma atitude que é completamente contrária às suas atitudes desde o início do filme? Como optar por desrespeitar as regras, sem que isso se transforme numa regra desregrada? Como, em suma, viver sem regras? As regras funcionam para quem? Regras criam privilégios? As perguntas sem acumulam.

Se Mookie tivesse sentado e conversado com todas as partes, resolvido o problema no diálogo, negociando todas as questões, todos nós aplaudiríamos e saberíamos que era, claro, a "coisa certa". Mas o quão verdadeira seria essa cena? O filme mostra todas as nossas incoerências, nossas contradições, nossas vontades que são contra-si mesmas. Mostra que em situações extremas, às vezes, tomamos atitudes extremas. Que, às vezes, a violência contra símbolos opressivos, para destituí-los, para tentar equilibrar um pouco mais as coisas, são mais que desculpáveis, são necessárias. Mas qual é o limite para essa violência?

Suspeito que seja uma ótima metáfora do nosso momento histórico atual.

ps. revendo a cena agora, há uma outra virada de perspectiva quando o chinês diz para os negros que querem destruir seu lugar: "me black". Os negros entendem a diferença e param. Isso me lembra a famosa frase do Eduardo Viveiros de Castro: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”.

sábado, 5 de novembro de 2016

O que podemos fazer?

Vi esse pacote apocalíptico do governo estadual, depois da série de pacotes apocalípticos do governo federal, depois da eleição de um prefeito apocalíptico, ligado à Igreja Universal, e fiquei pensando: o que podemos fazer?

Em outras palavras: se acreditamos que há um descompasso imenso entre um discurso de austeridade e uma prática de aumentos de salários e benefícios para políticos e juízes, entre a suposta necessidade de cortes e a continua prática de isenções fiscais, feitas com, no mínimo, pouco esmero, o que podemos fazer?

Ainda: se não formos partidários da ideia de que esse é um remédio amargo para uma doença crônica, se percebermos que quem, como sempre, está pagando o pato é o andar de baixo, enquanto os ricos aumentam sua distância dos pobres, o que, cazzo, podemos fazer?

A resposta mais óbvia: protestar. Mas como? Que tipo de protesto? Aos domingos, fechando ruas da orla carioca - que já é normalmente fechada? Em dias de semana, interrompendo o trânsito no Centro da cidade, causando incômodo?

Qual é a garantia de manifestações? Demonstrar a insatisfação publicamente é o suficiente para que os mandatários mudem de posição? Ou eles podem simplesmente ignorar totalmente os protestos, como um pai generoso que olha a pirraça do filho e acha fofo? Ou ainda pior: e se eles capitalizarem essas manifestações para determinados fins, diferentes do que imaginamos?

Quantas pessoas são suficientes em um protesto para ter algum tipo de retorno? Seremos protegidos ou agredidos pela PM? Avisaremos com antecedência nosso trajeto? A manifestação será coberta pelas TVs? E se cobertas: qual será o tom? Seremos manifestantes ou vândalos?

Quais atitudes podemos tomar durante a caminhada? Podemos cantar palavras de ordem? Podemos xingar governantes? Podemos levar cartazes sugerindo a mudança do governo? Podemos pedir a morte de políticos?

Como chamar a atenção para a nossa insatisfação? Como não deixar que a manifestação seja domesticada? Como fazer com que os governantes nos escutem? Um protesto em um protestódromo seria eficiente? Qual grau de incômodo estamos dispostos a aceitar de manifestações contrárias às nossas intenções?

Podemos andar fora do trajeto determinado? Podemos revidar uma agressão de um policial? Podemos sequestrar embaixador americano, alemão, japonês? Podemos matar empresários que financiam estruturas de tortura?

Como demonstrar nossa insatisfação? Podemos quebrar símbolos  do Estado? Podemos quebrar vidraças de banco? Podemos tacar fogo em lixeiras? Podemos jogar coquetel molotov? Podemos exibir nossa raiva e frustração contra a precarização da educação, as filas de hospitais, a corrupção generalizada?

A morte de um tirano é justificada? Como decidir quem é tirano? Quem decide isso? Quais são os critérios?

O que podemos fazer, quando o horizonte parece tão pouco promissor, para voltar a ter um respiro de esperança?

terça-feira, 18 de outubro de 2016

As similaridades entre 'ciência' e 'fé'

O que o seu Buonarroti fez foi obra da fé ou da ciência - ou foi arte?
Não vejo diferenças essenciais entre o que as pessoas em geral chamam de "ciência" e o que chamam de "fé". Essas divisões acontecem, me parece, por conta de uma tentativa de colocar cada um dos saberes em um determinado escaninho em que as coisas não podem se misturar. Para mim, elas não somente se misturam: acho que, em alguns casos, elas são a mesma coisa.

Não estou tentando dizer aqui apenas que a fé pode ajudar a ciência - e/ou vice-versa -, mas que os âmbitos, as estruturas, a organização [como quer que o chamemos] entre os dois são extremamente permeáveis. Ou seja, alguma coisa pode ser "ciência" E também ser "fé" - não é excludente. Ou alguma coisa pode ser "fé" em determinado momento, sob algum determinado ponto de vista, e ser "ciência" em outro ponto de vista.

Também não estou afirmando que alguém com câncer deva optar pela homeopatia em vez da quimioterapia. O que eu estou dizendo é que, em alguns casos, circunstancialmente, a homeopatia teria o fim que em outros casos a quimioterapia teria. Tudo, me parece, nessa discussão, é circunstancial. Não daria para generalizar em nenhum caso [e isso é um problema danado, principalmente para a comunicação e a linguagem].

Muito menos estou tentando justificar a educação por parâmetros religiosos, ou qualquer tentativa de acabar com Darwin. Acho que, para se viver nesta nossa sociedade de alguma maneira ocidentalizada, da maneira como ela se apresenta para nós, neste momento, o que chamamos de "ciência" dá mais possibilidade de se criar um diálogo entre os diferentes que o que chamamos de "fé". Entre Stephen Hawking e o Papa fofinho, fico com o primeiro.

Esses argumentos, entretanto, me lembram um amigo que termina agora o doutorado em Farmácia. Ele disse certa vez que há estudos que comprovam a eficiência da homeopatia em alguns tratamentos. Ninguém consegue entender, pelo método científico, como isso funciona, mas, ao fim, funciona. [Isso é tão polêmico que vou perguntar novamente para ele.]

Ou também toda a discussão da física quântica, que, pelo pouquíssimo que entendo, no mínimo, ampliou a forma de nós entendermos a física, a partir da perspectiva unicamente newtoniana - e ninguém entende bem como alguns processos quânticos funcionam. Para ficar num exemplo bobo, o bóson de Higgs foi "comprovado" recentemente, apenas.

Ou de como, muitas vezes, o método científico é manipulado para chegar a determinados fins. Tipo, gente que ainda defende que o aquecimento global não teria influência dos humanos. Ou, menos polêmico, e um caso hipotético - porque não procurei um exemplo formal -, gente que ainda defenda que o fumo de cigarros industrializados não aumentaria a probabilidade de ter câncer.

Isso tudo para ficar apenas no parâmetro-sistema-hegemonia ocidental-capitalista-eurocêntrico. Se sairmos desse ponto de partida e colocarmos o centro em outro lugar, toda a conversa muda instantaneamente de figura. Não haveria divisões assim tão claras entre "ciência" e "fé" - aliás, esses conceitos-noções já não receberiam nomes com essas correspondências.

Eu fico imaginando que essa vontade de separar a nossa vida, a nossa experiência de viver, nosso contato com o mundo, em determinadas possibilidades-destinos-conceitos-noções é fruto da tradição fundada lá com o "Hamlet" do Shakespeare, no momento-chave do "Ser ou não ser". Mesmo que a passagem seja sobre um caso bem específico. Se eu me lembro bem [o que eu duvido], é uma discussão sobre se é melhor viver ou morrer. Mas ainda assim é um exemplo a se lembrar: ou se está vivo, ou se está morto, uma coisa anularia a outra. Mas aí eu lembro: e o gato de Schrödinger? Suspeito que, após Einstein, nós temos que mudar nossos parâmetros para: ser E não ser.

Também discordo, teoricamente, da afirmação de que "a revolução científica foi uma revolução da ignorância", que demonstraria que só a partir desse momento as pessoas começaram a duvidar de suas afirmações, um dos moto-contínuos da própria ciência. Se seguirmos esse raciocínio, o processo teria começado bem antes da revolução científica: no mínimo teríamos que voltar a Sócrates, quando ele diz que só sabia que não sabia. 

Mesmo que ele tenha dito isso para mostrar a ignorância dos seus interlocutores, o método dele era investigativo, ou, para usar uma expressão inventada neste exato momento, protocientífico. O que eu quero reafirmar com esse ponto não é marcar uma data de nascimento da ciência [há a anedota sobre um filósofo famoso do século xx que afirmou que a bomba nuclear já estaria contida no primeiro poema de Parmênides], mas que o Ocidente, essa abstração que criou toda a dor e a delícia do que nós somos, teria como princípio, em linhas gerais, claro, essa busca por saber mais. Só acho que, vez por outra, rola algo mais como um aprendiz de feiticeiro: somos surpreendidos por nossas criações. Vide a bomba atômica, o aquecimento global, a superpopulação e tantos outros efeitos colaterais.

Outro detalhe que eu acho que é importante ressaltar nessa discussão entre a ciência e a fé: de alguma forma, há sempre a necessidade de se "acreditar" na ciência - mesmo a que passou por todos os procedimentos e correções. Não há qualquer garantia que a "ciência" funcione - mesmo que ela funcione 1 milhão de vezes, há sempre um "salto no escuro", uma aceitação condicional desse formato. Gosto de usar o nome "metafísica" para explicar isso. Costumo brincar que a diferença entre ciência e fé é que a primeira tem uma corda imensa para explicar o caminho de "a" a "b" enquanto a segunda vai de "a" para "b" num instante. Mas os lados "a" e "b" permanecem os mesmos.

Também não vejo por que não se possa duvidar da própria fé. Conheço casos e mais casos de fiéis que não conseguem aceitar bem a própria fé e lutam contra ela - geralmente o pessoal das religiões mais estigmatizadas, como umbanda e candomblé. Claro que podemos dizer que os casos de problemas com a fé aqui poderiam vir do fato de essas pessoas estarem num mundo em que elas sofrem preconceitos - mas vejo o fenômeno acontecer até com pessoas que estudam profissionalmente tais religiões. O que diminui a possibilidade dessa influência. Isso para não dizer como a própria igreja católica conseguiu reverter o lado da questão da dúvida, para dizer que a dúvida é o que fortalece a fé em Cristo.

Mas, claro, isso tudo aqui tem que ser colocado em dúvida, já que foi escrito por um descrente que tem dificuldades de crer nas menores coisas - como, por exemplo, na própria "ciência".

sábado, 17 de setembro de 2016

Chinanews: precisamos falar sobre o WeChat

Um americano de cerca de 50 anos, casado com uma chinesa de uns 30, 35, contava à mesa de jantar após algumas garrafas de vinho como ele era um sujeito esquecido. Um dia desses, exemplificou, ele saiu de casa sem um centavo e só foi se dar conta disso quando estava dentro de um táxi voltando para casa. Como pagar o motorista?, se perguntou. Como, ao menos, avisar o motorista que ele não tinha qualquer dinheiro, já que o mandarim dele é ainda bem precário? Não pestanejou: sacou o celular e ligou para a esposa. Ela, claro, resolveu tudo: transferiu a grana para o celular dele, e ele pagou o motorista com o próprio telefone. Ou melhor, não exatamente com o celular, mas com o WeChat, o aplicativo de comunicação instantânea mais popular pelos lados de cá.

Um dos stickers do WeChat


O simples fato dessa plataforma ser a principal rede social da China já chama muita atenção: todo mundo, assim que ganha alguma intimidade, pede para escanear o QR do seu WeChat, como antigamente se pedia o número de seu telefone. São mais 800 milhões de usuários, sendo 90% na China. Para ter uma ideia, o Facebook no mundo inteiro tem só o dobro disso [ok, não é "só", mas vocês entenderam]. Whatsapp, um bilhão. Mas o WeChat vai além de uma rede social como esses concorrentes. O Weibo, por exemplo, também é grande, e também é basicamente chinês, mas é mais parecido com os sites ocidentais, tipo Twitter.

Já o WeChat tem comunicação instantânea, linhas do tempo, jogos, e todas as features que nós conhecemos MAIS uma que não é tão comum do lado daí do globo: funciona como uma espécie de cartão de banco - dá para fazer pagamentos, tem ligação direta com a sua conta corrente e até é possível transferência de um celular para outro. Exatamente como o sujeito ali em cima fez.

Dias desse, eu vi uma barraquinha que vende uns sanduíches de café-da-manhã, muito provavelmente informal, que aceitava pagamento no WeChat [não consegui conversar com o dono do estabelecimento, infelizmente]. Esse é o nível de penetração da ferramenta.

O WeChat é onipresente. Toda a vida social chinesa passa por conversas dentro do aplicativo, trocas de stickers e gifs animados, com piadas internas e fofuras diversas. Há todo um mundo a se explorar lá dentro - coisa que ainda não consegui chegar ao fim. É, sei lá, tipo esses jogos que vão se desenvolvendo a cada fase que passamos. Blogs, mini-sites, área de fotos, linhas do tempo, pode marcar os amigos em postagens, enfim. Tem mais um pouco que tudo. O frenesi do Twitter, mais o vício do Facebook, mais a instantaneidade do Whatsapp, mais o seu cartão de banco. E alguma outra coisa que eu ainda não descobri, certamente.

[No Brasil, uma curiosidade, o aplicativo serve quase como uma versão diferente dos apps de encontros, tipo Tinder ou Badoo [outra curiosidade: como o Google é proibido aqui, o site de busca mais usado é um quase homônimo, o Baidu - que se expandiu e tem outras características, como ser loja virtual], porque tem um recurso de encontrar quem está perto de você. Os moços, então, colocam fotos que mostram seus, digamos, dotes para jogo, com detalhes de centimetragens e, hum, amperagens.]

Voltando. Uma coisa é certa: a websfera chinesa é extremamente diferente da ocidental - e aí, sim, podemos dizer sem muito medo de errar muito, que há bastante em comum nesse lado do mundo em que estamos cada vez mais dominados pelo inglês como língua única e recorrendo aos mesmos sites de busca, de interação, assistimos aos mesmos vídeos, e brincamos nos mesmos aplicativos de caça a animais imaginários. Como ouvi certa vez de uma francesa filha de italianos que morava nos EUA: hoje em dia, vivemos todos na mesma internet.

Essa diferença entre China e resto do mundo acontece por alguns motivos, suspeito. Primeiro porque o pessoal do Vale do Silício - povo extremamente endeusado aqui, me pareceu - não conseguiu jogar o jogo com as regras chinesas. Como assim o Google não tem restrições? Como assim o Facebook deixa que todas as informações de outros lugares abertas para todo mundo? Não adiantou prometerem fazer acertos: a China percebeu que era também bastante interessante barrar as invasões bárbaras e criar aplicativos parecidos, que se desenvolveram seguindo as necessidades locais.

A Tencent, a dona do WeChat, é a terceira maior empresa de internet do mundo. A Alibaba, a Amazon deles, só que vendendo qualquer coisa que você imaginar - qualquer coisa MESMO -, é a quarta. O tal Baidu é o quinto [Amazon, Facebook e Google são, por enquanto, as líderes do ranking]. A receita bruta da Tencent foi 15 bilhões de dólares em 2015, a do Facebook, 17 bi.

A China tem o Great firewall, que impede de acessarmos abertamente determinados sites. Porém não é só isso que impede a livre circulação de ideias - propaganda de VPN é o que eu mais encontro aqui. Há, claro, além disso, a dificuldade com a língua. Quase ninguém fala inglês. Mas acho que a grande sacada foi: em vez de "só" censurar alguns conteúdos, meio no esquema "1984", o governo chinês percebeu que era mais eficaz sobrecarregar de conteúdo diverso e parecido a websfera, sempre numa versão branda e bom astral, meio no esquema "Admirável mundo novo". Seguir a Xinhua, a agência estatal de notícias deles no Twitter, é divertido. Aconselho a todos para se preparar para a futura EBC. Em suma, em vez de escassez, exagero.

Chinanews: precisamos falar sobre o WeChat

Um americano de cerca de 50 anos, casado com uma chinesa de uns 30, 35, contava à mesa de jantar após algumas garrafas de vinho como ele era um sujeito esquecido. Um dia desses, exemplificou, ele saiu de casa sem um centavo e só foi se dar conta disso quando estava dentro de um táxi voltando para casa. Como pagar o motorista?, se perguntou. Como, ao menos, avisar o motorista que ele não tinha qualquer dinheiro, já que o mandarim dele é ainda bem precário? Não pestanejou: sacou o celular e ligou para a esposa. Ela, claro, resolveu tudo: transferiu a grana para o celular dele, e ele pagou o motorista com o próprio telefone. Ou melhor, não exatamente com o celular, mas com o WeChat, o aplicativo de comunicação instantânea mais popular pelos lados de cá.

Um dos stickers do WeChat


O simples fato dessa plataforma ser a principal rede social da China já chama muita atenção: todo mundo, assim que ganha alguma intimidade, pede para escanear o QR do seu WeChat, como antigamente se pedia o número de seu telefone. São mais 800 milhões de usuários, sendo 90% na China. Para ter uma ideia, o Facebook no mundo inteiro tem só o dobro disso [ok, não é "só", mas vocês entenderam]. Whatsapp, um milhão. Mas o WeChat vai além de uma rede social como esses concorrentes. O Weibo, por exemplo, também é grande, e também é basicamente chinês, mas é mais parecido com os sites ocidentais, tipo Twitter.

Já o WeChat tem comunicação instantânea, linhas do tempo, jogos, e todas as features que nós conhecemos MAIS uma que não é tão comum do lado daí do globo: funciona como uma espécie de cartão de banco - dá para fazer pagamentos, tem ligação direta com a sua conta corrente e até é possível transferência de um celular para outro. Exatamente como o sujeito ali em cima fez.

Dias desse, eu vi uma barraquinha que vende uns sanduíches de café-da-manhã, muito provavelmente informal, que aceitava pagamento no WeChat [não consegui conversar com o dono do estabelecimento, infelizmente]. Esse é o nível de penetração da ferramenta.

O WeChat é onipresente. Toda a vida social chinesa passa por conversas dentro do aplicativo, trocas de stickers e gifs animados, com piadas internas e fofuras diversas. Há todo um mundo a se explorar lá dentro - coisa que ainda não consegui chegar ao fim. É, sei lá, tipo esses jogos que vão se desenvolvendo a cada fase que passamos. Blogs, mini-sites, área de fotos, linhas do tempo, pode marcar os amigos em postagens, enfim. Tem mais um pouco que tudo. O frenesi do Twitter, mais o vício do Facebook, mais a instantaneidade do Whatsapp, mais o seu cartão de banco. E alguma outra coisa que eu ainda não descobri, certamente.

[No Brasil, uma curiosidade, o aplicativo serve quase como uma versão diferente dos apps de encontros, tipo Tinder ou Badoo [outra curiosidade: como o Google é proibido aqui, o site de busca mais usado é um quase homônimo, o Baidu - que se expandiu e tem outras características, como ser loja virtual], porque tem um recurso de encontrar quem está perto de você. Os moços, então, colocam fotos que mostram seus, digamos, dotes para jogo, com detalhes de centimetragens e, hum, amperagens.]

Voltando. Uma coisa é certa: a websfera chinesa é extremamente diferente da ocidental - e aí, sim, podemos dizer sem muito medo de errar muito, que há bastante em comum nesse lado do mundo em que estamos cada vez mais dominados pelo inglês como língua única e recorrendo aos mesmos sites de busca, de interação, assistimos aos mesmos vídeos, e brincamos nos mesmos aplicativos de caça a animais imaginários. Como ouvi certa vez de uma francesa filha de italianos que morava nos EUA: hoje em dia, vivemos todos na mesma internet.

Essa diferença entre China e resto do mundo acontece por alguns motivos, suspeito. Primeiro porque o pessoal do Vale do Silício - povo extremamente endeusado aqui, me pareceu - não conseguiu jogar o jogo com as regras chinesas. Como assim o Google não tem restrições? Como assim o Facebook deixa que todas as informações de outros lugares abertas para todo mundo? Não adiantou prometerem fazer acertos: a China percebeu que era também bastante interessante barrar as invasões bárbaras e criar aplicativos parecidos, que se desenvolveram seguindo as necessidades locais.

A Tencent, a dona do WeChat, é a terceira maior empresa de internet do mundo. A Alibaba, a Amazon deles, só que vendendo qualquer coisa que você imaginar - qualquer coisa MESMO -, é a quarta. O tal Baidu é o quinto [Amazon, Facebook e Google são, por enquanto, as líderes do ranking]. A receita bruta da Tencent foi 15 bilhões de dólares em 2015, a do Facebook, 17 bi.

A China tem o Great firewall, que impede de acessarmos abertamente determinados sites. Porém não é só isso que impede a livre circulação de ideias - propaganda de VPN é o que eu mais encontro aqui. Há, claro, além disso, a dificuldade com a língua. Quase ninguém fala inglês. Mas acho que a grande sacada foi: em vez de "só" censurar alguns conteúdos, meio no esquema "1984", o governo chinês percebeu que era mais eficaz sobrecarregar de conteúdo diverso e parecido a websfera, sempre numa versão branda e bom astral, meio no esquema "Admirável mundo novo". Seguir a Xinhua, a agência estatal de notícias deles no Twitter, é divertido. Aconselho a todos para se preparar para a futura EBC. Em suma, em vez de escassez, exagero.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

CHINANEWS: Religião ou relações públicas?

O monastério budista Longquan fica longe para dedéu do centro de Beijing – mas ainda pertence à grande metrópole de Beijing. São mais de 50 quilômetros da Praça Tian’anmen – o centro do Reino do Centro –, ou uma hora de carro depois de descer na última estação da linha 4, que, por sua vez, já é quase em Japeri. Fica dentro do parque Fenghuangling (serra da Fênix), em cujas montanhas estão escritos os famosos dizeres com a caligrafia de um mestre da arte de séculos atrás: 德道 – De Dao, caminho da virtude ou caminho virtuoso. Dois dos conceitos centrais do antigo pensamento chinês.

O monastério é impactante
Toda essa lonjura funciona para que os monges e os estudiosos do budismo possam, há mais de mil anos (entre ida e vindas), se isolar da agitação da capital e focar nas leituras e discussões dos textos sagrados. Ou funcionava para isso. Desde 2005, quando o local voltou a se tornar o centro nervoso dos budistas chineses, a nova administração está tentando abrir as portas e se comunicar com o mundo todo.

O capo do lugar, o venerável mestre Xuencheng – visto pelos frequentadores do lugar como a maior autoridade do budismo na e da China – é o "autor" de blogs e microblogs, além de uma penca de livros. O próprio monastério também tem um site próprio em que aborda assuntos tão diversos como terrorismo, a causa animal ou os benefícios de se entoar os cânticos e sutras budistas. Todos traduzidos para diversas línguas, que vão do japonês, tailandês e coreano, até o espanhol, francês e inglês. Agora chegou a vez do português.

Há alguns meses, estudantes chineses da última flor do Lácio se encontram no monastério aos domingos para repetir uma rotina: ler um sutra de manhã na língua de Camões (mesmo que o conhecimento da língua ainda não seja lá essas maravilhas), almoçar no imenso e novíssimo refeitório seguindo as regras locais (não se pode falar, deve-se aprender os gestos cerimoniais, e é de bom tom ajudar na limpeza do lugar), e discutir os caminhos da versão para o português de todo esse material produzido diariamente.

No último domingo, estive lá após encontrar um convite num site tipo a "Time Out" para se ler sutras em português. Eu, que nunca tinha tido contato com qualquer sutra, fiquei com uma curiosidade imensa e dupla. Por que diabos eles estão falando de budismo em português?

Sou um curioso sobre as religiões. Tenho uma dificuldade imensa em entender a crença, a fé, qualquer fé, mas acho um dos sentimentos mais genuínos que existe, quando “autêntico” (se é que há isso). A fé é algo que antecede a razão e dá forças para que muitas pessoas consigam empurrar a pedra morro acima, diariamente, mesmo sabendo que ela vai cair durante o sono.

Muitas vezes, entretanto, a fé, exatamente por trabalhar em outros canais que não o que comum e metafisicamente chamamos razão, é usurpada por sacerdotes aproveitadores. Não precisamos ir à China para ver isso, basta pensar na Igreja Universal e o seu drive-thru do descarrego em São Paulo.

De todas as religiões, as orientais me parecem menos “contaminadas” por aquilo que Heidegger chamou de “técnica”, mas que, numa interpretação mais aberta, poderia ser também a modernidade, o Ocidente, o capitalismo, a, enfim, hegemonia de pensamento. Aquilo que transforma todos os aspectos da vida, do ser, daquilo que há, em apenas uma causa para uma mesma consequência: dar mais lucros. "Lucro", repare você, aqui é usado como uma palavra metafórica, não precisa ser dinheiro exatamente.

Eles insistem que a imagem parece um homem deitado
Essa hegemonia do modo de ser atual criou as bases para que todas as coisas sejam mais eficientes, úteis, práticas – todas, claro, de acordo com apenas um único padrão. O hegemônico.

É um processo que se retroalimenta. Qualquer comportamento que fuja inicialmente desse formato estrutural exigente, como a contemplação, o ócio, a calma, é logo cooptado. O ócio tem que ser criativo, os restaurantes lucram com a slow food e a comfort food, a criação só é valorizada caso tenha likes e compartilhamentos. A hegemonia é compulsória. Não há lado de fora. A utopia é um espaço a se conquistar, novamente e sempre.

O budismo, assim como o hinduísmo, o taoísmo, e até mesmo o confucionismo, propõe caminhos que são anteriores à hegemonia atual. Ou proporiam. Quem viu “Mad men” até o final sabe que há décadas o Ocidente viu no Oriente uma possibilidade de criar uma new age do capitalismo. Mas e aqui na China? Como ficou isso?

Já no primeiro contato com os meninos e meninas do grupo, todos se mostraram empolgados com a presença de um curioso brasileiro. Foram extremamente carinhosos e atenciosos, o tempo todo – mesmo quando tive que tirar o sapato e o meu chulé empesteou a sala. Na minha primeira conversa com André, um dos voluntários, ele me perguntou sobre o meu interesse no budismo e ficou claramente constrangido quando eu disse que eu o imagino como um sistema de pensamento – mais que uma religião – em que as regras não são dadas anteriormente, em que não há uma dicotomia clara entre bem e mal, em que há a necessidade de se encontrar o equilíbrio em todas as ações. Logo entendi por que ele ficou com aquela cara de interrogação.

O último cristão morreu na cruz, disse Nietzsche. Talvez possamos acrescentar que o último budista tenha ascendido aos céus com o Gautama. Li apenas um sutra, e portanto esse meu resumo deve ser encarado com desconfiança, mas na passagem havia claramente um tom maniqueísta e de salvação única e exclusivamente pela fé. Uma passagem cheia de jargão, abusando de uma mitologia do extremo-oriente, com outros deuses e hierarquias entre os seres santos, completamente diferente da história “original”. Como se a passagem de Sidarta Gautama fosse o evangelho e os sutras todo o restante da bíblia.

A entrada para as "capelas" não foi reformada ainda
Líamos em português mas só André e Verônica (outra voluntária) tinham noção da língua. O importante nem era entender, mas apenas recitar o texto sagrado. Como se isso já fosse o suficiente para se adentrar o espaço da fé.

Para piorar a minha percepção, a magnitude do espaço me impressionou – negativamente. É um prédio suntuoso que continua em obra, mesmo depois de mais de uma década de abertura. Todo o espaço interno é coberto por madeira de qualidade. O edifício, que tinha se transformado em habitação dos camponeses durante a revolução cultural, tem traços megalomaníacos que fazem um visitante mais incrédulo como eu não deixar de pensar da catedral da fé, da Igreja Universal, ali na Suburbana.

Almoçamos – homens para um lado, e sempre à frente, mulheres para o outro, e vindo depois – e fomos conhecer o espaço ao redor. Fui apresentado a Liuwen, uma professora de inglês extremamente simpática e prestativa que ajudou e ajuda voluntariamente na tradução do material (todo mundo ali doa o seu trabalho para o monastério). Ela me serviu de guia no restante do dia. Conhecemos a horta orgulhosamente orgânica, onde há um espaço dedicado exclusivamente para os insetos, e onde não se pode comer nem mesmo uma das infinitas castanhas: tudo pertence ao altíssimo, me responderam quando estava para dar uma mordida no fruto colhido do pé.

Depois, seguimos para onde ficam as “capelas” do lugar. Conheci a área para as celebrações ao ar livre, com canais de centenas de anos, e descobri que para essa escola do budismo, há budas do passado, do presente e do futuro. Liuwen ficou confusa quando neguei a opção de fazer um pedido para um dos budas, pra que meus sonhos se realizassem. Disse a ela que não desejo nada, que estou muito satisfeito com a minha sorte e aceito sem muitos problemas o que o destino me reserva. Tentei amenizar lembrando que a minha irmã também sofre com esse meu comportamento, quando ela me pergunta o que eu quero ganhar de presente no meu aniversário. Não adiantou muito.

Vimos árvores sagradas que eles consideram ter mais de mil anos (gosto muito da tradição chinesa de honrar as árvores) e fomos participar do encontro de discussão da tradução. Assistimos a um vídeo que mostrava como as versões em outras línguas dos escritos sagrados eram importantes para divulgar a boa-nova. Como era indispensável que se propagasse o budismo pelo mundo. E eu só pensava nas missões religiosas e o papel disso para a expansão da cultura ocidental pelo mundo.

Em vários momentos, eles se diziam felizes por eu querer conhecer mais da cultura chinesa. Não diziam do budismo. Como se China e budismo fosse intercambiáveis, mesmo que toda a história do budismo tenha nascido entre Índia e Nepal, mesmo que a grande maioria da população chinesa se considere sem religião – ou venere apenas o deus dinheiro.

Essa é a área onde se fazem as cerimônias ao ar livre
No fim da tarde, fomos recebidos por um dos principais monges do lugar, o venerável Wuguang, secretário do monastério. Segundo me contaram, ele é o número dois da hierarquia do espaço, e esses tipos de encontros são extremamente incomuns – disseram que eu tinha sorte. Ele basicamente me contou dos planos de modernização que o venerável mestre Xuecheng tenta colocar em prática, por conta do mundo contemporâneo. De como isso tinha como intenção propagar a fé, angariar recursos do mundo inteiro para o monastério, e contribuir com o pensamento produzido ali nas discussões urgentes do momento, como terrorismo, aquecimento global, crise ecológica. Ganhei três livros e um CD-Rom, com ensinamentos do venerável e com uma pequena história recente do prédio. Não consegui parar de pensar que aquilo era uma metonímia da China. Ou como, para a China, aquele monastério tinha se tornado, depois de anos fechado, muito importante para o seu tabuleiro geopolítico. Explico melhor:

Em primeiro lugar, porque a China pode se mostrar tolerante com outras crenças (além da fé no comunismo de mercado, ou capitalismo de Estado, o paradoxo que você preferir). Liberdade religiosa é um capital valorizado em um mundo em que as pessoas se matam por discordar da fé alheia. Além disso, mostra que a China deixa, aos poucos, que algumas liberdades apareçam – como se isso fosse o suficiente.

Também há o soft power.  No tabuleiro das relações internacionais, a China aparece sempre com a força bruta de ter uma nação de mais de um bilhão de pessoas, um dínamo militar e com uma economia de crescimento vertiginoso. Mas isso não consegue conquistar cabeças e mentes de um povo acostumado a ser seduzido por tramas açucaradas de Hollywood, músicas pops e modas, culinária e costumes europeizados.

Talvez uma narrativa (palavra do momento, mas que pode ser traduzida para “caô”, como sugeriu L. A. Simas) mais simpática, como a do budismo, e a sua agricultura orgânica, sua preservação histórica, sua mitologia aguada em que basta a fé para mover montanhas, pode ter uma boa entrada o outro lado do globo.

Por último, mas nem por isso menos importante: Tibete. Em vários momentos os meus verdadeiramente simpáticos cicerones insistiam o quão importante é o venerável mestre Xuecheng, como ele é a maior autoridade na China sobre o budismo. Como ele é o presidente da Associação Budista da China. Como ele é quase uma figura mítica. A maneira como todos eles tratavam qualquer monge, com uma veneração (não é à toa a alcunha de venerável para todos eles) me faz crer a intenção de sacralizar essas figuras.

Dragões, fênix... os animais chineses são bem legais, hein
Ora, o Tibete fica dentro do território chinês e quer se tornar independente da China. O Dalai Lama é a principal personagem do budismo tibetano, mas agora tem que viver na cidade de Mcleod Ganj, na vizinha Índia, porque ele é persona non grata aqui. No mundo inteiro, porém, ele é uma doce figura que torna o tema Tibete um dos assuntos mais amargos para a China. Quanto mais a China tenta massacrar o Dalai Lama, mais ele se fortalece, se tornando a personificação do injustiçado, do herói, do Davi contra Golias.

Se não dá para usar a força, como, então, combatê-lo? Criando outra figura, que seja tão importante e simpática quanto o concorrente. Jogando todo o foco nessa outra figura. Modernizando (em vários sentidos) um ensinamento milenar. Diluindo uma discussão complicada. Traduzindo suas palavras para todas as línguas importantes, inclusive o português.

De tudo isso, o que mais me incomodou, entretanto, foi o uso da fé alheia para fins nem sempre muito claros. São inúmeros voluntários trabalhando de graça nos fins de semana, além de um grupo fixo de um grupo que eles chamam de “leigos”, que moram lá e ajudam a administração desse enorme complexo religioso. Pessoas que dão todas as suas forças para uma organização, com o intuito de ajudar o budismo.

Em muitas vezes, me pareceu que eles estavam sendo enganados. Em outras, pensei que o importante para eles, mais que o simples processo religioso, da crença em si, era criar uma comunidade da qual eles se sentissem parte. Isso aparentemente acontece. Há uma conexão forte no grupo. Mas não sei o quanto é válido ser usado como massa de manobra para fins escusos. Participar de uma instituição que escorrega várias vezes na hipocrisia. Não sei o quanto há nessas práticas cotidianas do monastério do chamado “caminho virtuoso” – como a inscrição no morro ali atrás do monastério não nos deixa esquecer. Parece que pouco.

BOX - Bolinhos dos céus

Meti a mão na massa
A discussão da tradução foi curta – basicamente só eu dei opiniões. Devem optar pelo português brasileiro ou de Portugal? Como divulgar no Brasil? Como traduzir determinados termos? Nada muito empolgante. Fomos, então, participar da produção das tortas da lua (月饼, yuèbĭng), por conta do festival de outono, em que, por uma tradição muito antiga da China, se venera a deusa que mora na lua, deusa esta que se confunde com a própria lua. O feriado é nacional, acontece na próxima quinta-feira, e a intenção é reunir as famílias num jantar de confraternização. Mais ou menos como o natal para os brasileiros, ou Thanksgiving para os americanos.

O bolinho em si é gostoso e simples: uma massa comum com recheios variados, do doce ao salgado. O do monastério tinha uma mistura de castanhas, gergelim, amendoim. Era doce, mas não muito doce. Minha função foi enrolar a massa no recheio e entregar para a formatação. Eu era o único homem na minha área. Os homens cuidavam de colocar a massa dentro de uma forma, tipo um espremedor de batata, para que todos eles saiam iguais. O monastério vende caixas desses bolinhos. Liuwen comprou três caixas e me deu uma tortinha. O reverendo responsável pela cozinha me autorizou, porque eu os ajudei, a comê-los quentinhos, recém-saídos do forno.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Chinanews: O G20 e o ressentimento

A China em crise de identidade
Recentemente, antes da abertura do G20 aqui na China, o presidente dos EUA, Barack Obama, teve que enfrentar um incidente diplomático: a escadinha para sair do seu avião oficial não apareceu. Ele teve que usar a saída de emergência. Obama também foi o único chefe de Estado que não teve direito a tapete vermelho. Até o golpista Temer recebeu o agrado.

Segundo comentários de quem entende do assunto, não foi um incidente, quiçá um acidente: foi deliberado. Os chineses queriam mostrar para o público interno que conseguem subjugar o [chamado] homem mais poderoso do planeta. Pura peça de propaganda, portanto.

A intenção do ato é reafirmar o mito da nação grande, em franco crescimento que em breve completará seu destino, que está gravado no próprio nome da nação em mandarim. Zhōngguó, ou 中國, quer dizer algo como nação do centro, do meio - do mundo. Em outras palavras, ser o motor que puxa o globo, morro acima. Ser o foco principal das atenções. Mudar o campo gravitacional da política internacional, do Atlântico para o Pacífico, da Europa-América do Norte, para a Ásia. Ser, enfim, a nação mais poderosa do planeta. [Poder, poder, poder.... quem decide isso?]

Essa vontade de liderança é apoiada pela população, em geral, pode-se dizer. Os chineses são o povo mais otimista em relação ao futuro que há. Essa confiança faz fronteira perigosa com a petulância e a arrogância. É a necessidade não de ser o primeiro colocado, mas de estraçalhar o adversário. É eleger um nêmesis, um inimigo que deve ser não somente suplantado, mas destruído. Isso é muito perigoso. Não é xenofobia, ainda ou totalmente. Mas é quase.

Lembra a noção de ressentimento em Nietzsche. Pelo que eu me recordo, o bigodudo dizia que, pelo ressentimento, só somos formados a partir do outro. O outro que nos dá nossa dimensão. Somos, portanto, apenas e somente no outro. O que Nietzsche está sugerindo, se eu ainda consigo recitar, não é necessariamente ignorar o outro, e viver uma vida completamente isolada do convívio - seja social ou geopolítico - mas afirmar a nossa potencialidade independentemente do nosso entorno.

Exemplo da natação. Sempre me disseram: nade o seu melhor. Se o seu melhor for o suficiente para ganhar a competição, ótimo. Se, pelo outro lado, você apenas focar em vencer o competidor do lado, vai acabar, na maioria das vezes, morrendo no final de prova [cf. PEREIRA, T., 2008, 2012 e 2016]. Em outras palavras e voltando para o caso chinês: não haveria um problema, em si, da China querer crescer [noves fora todas as consequências ambientais, claro]. Mas não pode tratar mal os coleguinhas por isso.

Esse é o traço mais funesto de outro mito: a competitividade como única forma de produção [aqui no sentido grego, mais amplo, de, resumindo, criação de algo]. A China, que ainda se vende internamente como uma nação comunista, está começando a praticar a mais nociva ação da lei de mercado. Como se dissesse, não basta vencer, tem que humilhar o outro. Eles engatinham ainda no assunto, mas o "otimismo" em relação a isso é grande. Dá para ver.

Essa é a base de qualquer projeto que prioriza o indivíduo, por meio de seus [cof, cof...] "méritos", em vez de pensar num projeto mais amplo em que o máximo número de pessoas fosse incluído. Serve para a China, para os EUA ou, claro, para o Brasil. Melhor que isso certamente seria: em vez de se preocupar com o outro, se preocupar com todos os outros.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

#Chinanews: o futuro da linguagem

Um coração sempre quer dizer < 3
Os caracteres chineses são a tentativa direta de uma linguagem que tenta ser mais visual, que tenta ser mais imagens que sons. Por exemplo, o 人, rén, em pinyin, a transliteração oficial, (se pronuncia com um "g" que sugere um "r", ou um som entre esses dois fonemas). Quer dizer "pessoas", "gente", mais de um fulano. Ao olhar para o caractere, não é exagerado falar que parece com o caminhar de um sujeito. Outro exemplo: 口, que quer dizer "boca" e se pronuncia algo como "kou / kŏu", e também parece uma abertura (alguns outros exemplos aqui).

Claro que nem todos o caracteres são tão correlacionados assim. Parece que há várias categorias e estes seriam apenas da categoria "pictogramas", mesmo, que tem exatamente essa características de lembrar um desenho. Na verdade, a linguagem seria infinitamente mais complicada se fosse apenas "representacional". Apesar de uma crença que eu tinha, o mandarim tem início-meio-fim, ou sujeito-verbo-predicado. E tem palavras bem mais abstratas. Tipo 大, dà, que quer dizer "grande" - e já dá para ver que o negócio começa a se desenhar.

De toda forma, mesmo que nem todos os caracteres sejam estritamente pictográficos, eles são, sempre, extremamente visuais. São desenhos, pequenas obras feitas com cuidado. A caligrafia aqui, aliás, é considerada uma arte, tão poderosa quanto, sei lá, a pintura.

Esses símbolos carregam em si um valor muito maior que uma simples letra carregaria. Ele já vem, sozinho, com toda uma carga de significados, que podem se multiplicar dependendo da maneira como a combinamos. Funcionam como uma espécie de emoticons versão -1.0. Como desenhos que ganharam vida sozinhos e foram se modificando ao longo do tempo.

Curiosamente, apesar de o mandarim ter a sua própria grafia de números (一, yi, por exemplo, quer dizer "um"), é extremamente comum encontrar os algarismos indo-arábicos (os que nós usamos) aqui, no meio dos ideogramas e dos pictogramas. Minha explicação-chute para isso é: os números também são símbolos, desenhos que são correlacionados a uma outra informação, como exatamente funciona os caracteres chineses. É o mesmo campo semântico.

Suspeito que, com a proliferação de designers que espalharam universalmente setas para cima e para baixo, botões verdes e vermelhos, carinhas que sorriem, choram e até duvidam, caminhamos nessa direção quando o assunto é linguagem. Não é bem uma surpresa, portanto, que a palavra escolhida pelo dicionário Oxford para representar 2015 seja um emoji: Face with Tears of Joy (só para efeito de comparação, a de 2013, na eleição bienal, foi "selfie"). O futuro da palavra não é exatamente um grunhido, como temia Saramago, mas um desenho - que retrata o grunhido, talvez?

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

CHINANEWS: O gene do cecê

Uma das dez principais dicas de todo o Lonely Planet da China, ao lado de "visitar a Grande Muralha", "Provar suas comidas diferentes", "Embrenhar-se em suas cidades históricas" é: leve desodorante.

WHAT?

Foi a minha primeira reação.

What?

Foi a segunda.

Fiquei realmente encucado. Como assim? Como assim? Como...? Para ter mais informações, já que o Lonely Planet não entrava em detalhes,  fiz contato com quem já tinha vindo para cá para confirmar: sim, era melhor trazer um frasco de desodorante extra. Aparentemente nas cidades do interior, tinha sido um problema para encontrar o produto.



Pensei: não vou ter esse problema ficando direto em Pequim. Uma cidade grande, cosmopolita, com grande circulação de estrangeiros, de todas as nacionalidades... um produto tão banal como desodorante deve ser encontrado em qualquer canto.

Qual foi a minha surpresa quando - TCHARAM - realmente se comprovou o pior cenário. Não encontrei em NENHUM lugar, até agora, desodorantes. De mercadinhos a mercadões, de sujeitos que não falam uma palavra em outra língua que não chinês até a "Mark Expensive". Nada.

A situação ficou cada vez mais curiosa porque, bem, não há um cheiro de suor generalizado aqui, mesmo que o calor seja próximo do insuportável em alguns momentos. Como assim? Que tipo de magia os chineses usam para o cheiro desaparecer? Será que há algum produto caseiro para tratar o tão famoso cecê? Foi então que...

The plot thickens.

Descobri recentemente uma informação que é quase tão surreal quanto o fato de não ter desodorantes aqui. E que é a explicação perfeita para isso. Há um gene que produz uma secreção que é o que atrai a bactéria que vai produzir a fedentina. Essa especificidade genética é completamente, absurdamente, improvável. Mas por uma combinação bizarra acabou acontecendo. Há um gene do cecê. [Leia com seus próprios olhos aqui.]

No Reino Unido, cerca de 2% das pessoas nascem com uma variação nesse gene e faz com que eles não fedam [eta palavra estranha]. Já no extremo oriente, o jogo vira. A imensa maioria das pessoas aqui tem essa variante de gente e, portanto, não fedem - e não tem necessidade de usar desodorante. Daí, a indústria não investir na produção e distribuição de tal produto.

Ainda bem que trouxe um pequeno estoque para consumo próprio.

De qualquer forma, não desisti de procurar desodorantes, por esporte. Tipo caçar pokemon - só que mais complicado.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

#CHINAnews: Fazer noodles

Fui uma única vez ao Mr. Lam e uma única vez ao finado Primeira Pá. Minha experiência com culinária chinesa se resumia quase em sua totalidade ao período londrino. Mas lembro-me bem do mise-en-scène do chef do Mr. Lam ao fazer o noodles do restaurante.
Era um evento. Todo mundo parava de comer o que quer que fosse e via o sujeito jogar a massa para lá e para cá, balançar, espremer, amassar, socar, sovar, rodar, embolar, desembolar, embolar novamente e, como num passe de mágica, zás, já estava pronto os fiozinhos finos de massa que seriam em seguida cozida e servir de base para muitos pratos do restaurante. Mais ou menos como faz esse cara aí:
https://www.youtube.com/watch?v=IxdGYoAQVZU
Só que bem mais espetaculoso. Era um evento, além do próprio evento de jantar ali. Ninguém era servido, ninguém se levantava. A luz focava no moço do centro. Era um show até um pouco meio over, bem a cara do Eike Batista, o sujeito que literalmente encoleirou sua então mulher e que tinha um carro de luxo na sala de estar.
Eis que estava agora numa praça de alimentação bem gente-como-a-gente e decido comer macarrão, já que não tinha ainda provado da comida que Marco Polo, diz a lenda, trouxe das mãos de Kublan Khan para a Itália e o Ocidente [olha, é só lenda mesmo, tá? Parece que o macarrão já existia na Europa há muito mais tempo.].
Chego lá e o camarada tá fazendo macarrão com a maior sem cerimônia que existe, da mesma maneira que o fulano cheio de estrela do Mr. Lam. Ele jogava para lá e para cá, mas era tão sem se importar com o que rolava, tão cotidiano, que eu imaginei que era quase um desperdício ele só fazer isso. Poderia fritar os bolinhos também, ora.
Às vezes, é bom saber, o espetáculo é apenas um truque de mágico.

domingo, 7 de agosto de 2016

CHINAnews: Olimpíadas

Há quatro anos estava lá em Londres, tentando me equilibrar entre tablete, celular, televisão e computador, para assistir ao máximo possível das Olimpíadas - quando não estava ao vivo nas competições. [Vi, por exemplo, a medalha de bronze do Cielo nos 50 m livre. Vi Phelps perder para o Chad Le Clos, numa prova que ele é recordista mundial desde os 15 anos, o 200 m borboleta, por um centésimo - ah, o um centésimo na natação...]

Na TV, entretanto, não conseguia ver o que eu queria. Para começar, o óbvio: os quatro canais da BBC focavam em atletas britânicos. Além disso, mesmo quando não havia Britons, a BBC preferia passar os esportes que eles têm mais tradição: hipismo, remo, vela... Essas coisas que nós temos, curiosamente ou demonstrando nosso vira-latismo centenário, história também.



Aqui na China, isso acontece novamente: saltos ornamentais. Tiro com arco. Levantamento de peso. Tênis de mesa. E propaganda com Sun Yang [foto], recordista mundial dos 400 e 1500 livre - que acabou de ficar com a prata na primeira [e quem eu vi em Londres bater um recorde mundial na segunda]. E dá-lhe entrevista com os atletas vencedores na CCTV - a TV estatal com o nome mais piada-pronta que existe.

[Uma pausa para explicar o chiste: CCTV é a sigla para China Central Television, mas também para Close-Circuit Television, no Reino Unido, isto é, a gravação big brother de todos os seus passos, seja nas ruas seja em qualquer outro lugar. Uma TV estatal de um país em que as liberdades são bem controladas ter o mesmo nome do sistema de TV interna é quase batom-na-cueca.]

Voltando. Para quem acha que o Brasil é o único país capitalista-selvagem porque foca mais no futebol, vôlei, basquete e outros esportes que dão audiência, ou para quem acha que o brasileiro é um péssimo torcedor, porque só quer saber de ganhar, pode perceber que isso é um fenômeno mundial. Um fenômeno que respeita um único deus: os lucros e os dividendos.

Seria isso "democrático", portanto? Já que é o "povo" quem escolhe ao que quer assistir? Sem entrar numa discussão que remeteria diretamente à escola de Frankfurt, não consigo aceitar a hipótese facilmente. Só queria levantar a dúvida para quem ainda hoje pensa que a China é um país comunista. Guiar a programação por um critério tão capitalista é, no mínimo, contraditório.

sábado, 6 de agosto de 2016

CHINANEWS: O Ocidente ao ocidente do Ocidente

Somos tão diferentes dos chineses, assim? Se espantar com as óbvias dissimilaridades é ridiculamente fácil. Como, então, ao contrário, enxergar o que ou em que nós somos parecidos? 

Me descobriram.
Para começar, China e Brasil são países que até hoje não ditaram as regras do mundo. China, nos últimos anos, vem assumindo um papel de liderança, sim, mas isso é bem recente, principalmente se considerarmos a história dessa imensa e antiquíssima nação. É muito provável que o mundo venha se tornar cada vez mais chinês – seja lá o que isso queira dizer –, mas isso ainda não é uma realidade. Ainda assistimos a filmes americanos, comemos pizza, tomamos vinho, escutamos rock.

Como bem disse Caetano – fazendo já uma citação às avessas de Fernando Pessoa – o Brasil é o Ocidente ao ocidente do Ocidente. Não conseguimos nos encaixar perfeitamente bem nessa divisão tão simples, capitaneada pelos países ricos e famosos, em que há uma e única forma de fazer as coisas. Sempre sobra algo.

Mesmo o nosso pé europeu do tripé é torto, parece bruto demais para o clube dos ricos e famosos. Somente nossa elite acredita que pode se achar mais europeia que os próprios europeus. Ou mais norte-americana – de Miami ou Orlando, claro – que os estadunidenses. Ninguém mais, além desses deslumbrados vira-latas, consegue se olhar no espelho e dizer sem titubear que é branco puro-sangue de corpo e alma. Sempre escorregamos.

E deveríamos incentivar esses escorregões, ao invés de reprimi-los. Deveríamos mostrar que é nesses escorregões, quando saímos do julgamento, do padrão estabelecidos pelos outros, que conseguimos criar algo fora dos padrões obrigatórios. Só assim que encontramos o contraponto, o balanço, o entre que não é estático, que é sempre um movimento, em suma, sincopado.

Vejo um paralelo que é comum em outros lugares grandes e que tem uma classe média forte [como a Índia, por exemplo]: O chinês urbano vê o rural com o mesmo desprezo que o brasileiro do asfalto olha para o do morro. Não deve ser visto como coincidência como esses países lidam com as pessoas de pele mais escura. Na Índia, anunciam cremes para clareamento de pele nos pontos de ônibus. Na China, as mulheres usam roupas de manga comprida para evitar se queimar. No Brasil, bem, no Brasil nem precisamos dizer nada.

Há uma cisão que é uma ferida que nunca sara. Um lado olha para o outro de cima para baixo; o outro, de baixo para cima. O chinês urbano é um turista na zona rural, assim como o brasileiro do asfalto é um perdido em qualquer favela. É uma generalização, claro, mas a divisão está igualmente clara. Quem conseguiu participar do jogo do andar de cima, entendeu suas regras, imita os movimentos dos líderes da corrida, versus quem ainda faz a própria partida, com as próprias limitações, lutando pela sobrevivência diariamente.

No Brasil, sabemos que não somos ocidentais, mas também não somos orientais [e o que é exatamente o oriente?, pergunta há bastante tempo o Edward Said]. Se os chineses são quase o exemplo do extremo outro, do completo diferente, nós podemos nos contentar em dizer que somos algo que está além, que verga o Ocidente até ele se transformar em outra coisa. Um Ocidente que, para seguir a citação do Caetano, dá uma volta completa no globo para se reencontrar no mesmo lugar de antes, mas com um sentido diferente. Não uma oposição ao ocidente, porque carregamos também esse DNA, mas uma opção, um refresco, uma respirada, por assim dizer, que confunde a cabeça de quem tenta nos entender, com a régua fixa e imutável do pessoal lá de cima.

Assim, podemos tentar ser, em vez de europeus ou americanos – nunca seremos –, talvez mais orientais, no sentido de aceitar, de corpo e alma, ser esse outro – que ao mesmo tempo, sem deixar de ser, é, desde sempre, o mesmo. Por isso Ocidente ao ocidente do Ocidente. Pensando assim, talvez sejamos mais orientais do que nós imaginamos – ou queremos aceitar.

ps. Esse texto nasceu após eu ouvir a versão do Paulinho da Viola do hino nacional.

CHINANEWS: Incomunicabilidade

[Metáforas aparecem pelo caminho e podemos ou não colhê-las – acolhê-las – para tentar nos confortar de alguma maneira. Talvez as religiões tenham nascido daí. Quando alguém ouviu o trovão e disse que aquilo era Tupã – ou Thor – e que isso significava que havia um sentido maior, transcendental, para a existência, além da própria existência. Mas não precisamos ir tão longe assim.]

Ficar sem internet no seu quarto de hotel no primeiro final de semana livre é horrível. Mas é ainda muito pior se você está na China, longe dos seus entes mais queridos de quem você já sente saudade, é carioca, gosta de esportes e sua cidade está sediando uma olimpíada. Melhor dizendo, A Olimpíada. Aí é angustiante.



O sentimento de incomunicabilidade que já é alto aqui, em qualquer momento, é elevado nessa situação ao exponencial. Você se sente numa prisão em que não precisa estar exatamente dentro de quatro paredes, com um cadeado à porta. O mundo em que vive, com seus códigos, sua cultura pregressa, toda a sua trajetória, completamente diferente do seu entorno, é sua prisão. Não tem como sair, assim, rapidamente. Está encarcerado, dentro do seu próprio modo de ser, sem saber como chegar a qualquer outro alguém.

O tradutor Mabel Lee explica na curta introdução de “Soul Mountain”, talvez a obra mais conhecida do Nobel de literatura Xingjian Gao, sobre o mote central do livro: a necessidade da ligação com o outro para que o homem se constitua em sua humanidade. Em outras palavras, para que o homem [a mulher] se saiba homem [mulher]. “Quando privado da comunicação humana, não estaria o indivíduo condenado à existência do Homem Selvagem das florestas de Shennongjia, do Pé Grande da América ou do Yeti dos Himalaias?”.

Essas talvez sejam as figuras selvagens do sujeito que não consegue entrar em contato com o outro. No imaginário brasileiro, talvez se transformem no Saci ou no Curupira, ou ainda alguma das entidades da umbanda, não sei. No mundo urbano, ocidentalizado, essa personagem assume outras máscaras, que o tronco psi tenta mapear, como o esquizofrênico, o psicótico ou, numa versão menos violenta com o outro, o deprimido.

O mundo contemporâneo retira o senso de comunidade e condena o homem a ser somente um indivíduo, com todo o peso dessa decisão. O resultado, muitas vezes, é uma solidão acachapante, como uma bola de ferro presa no pé. Quando muitos dos meus amigos sugerem a força das ruas, a necessidade de se pensar o mundo pelo olhar do carnaval, é mais ou menos contra essa força que eles lutam. É a cultura do encontro, da celebração, da comemoração. Da comunidade.

Há quatro anos, estava em Londres e escrevia minha primeira coluna para o “Segundo Caderno” d’“O Globo”, coincidentemente sobre o espírito da cidade que se tornava também olímpica. Lembrava de um trecho de um poema do inglês John Donne que afirmava que “nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo” porque cada um é “parte do gênero humano”.

Temos que nos lembrar disso, sempre, para fugirmos do isolamento, mesmo quando estamos incomunicáveis.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

CHINANEWS: A comida

Uma das forças culturais da China é, inegavelmente, sua comida. É tão presente que a tradução literal para o cumprimento igual a “Como vai você?” é algo como “Já fez sua refeição?” ou “Já comeu?”. Ontem fiquei treinando a pronúncia com os chineses do escritório na hora do jantar. É algo como “ni chi le ma?”, ou"你吃了吗?", se eu entendi direito.

algodão doce deve ser uma invenção chinesa


Ligeira interrupção para dizer que a entonação das vogais em mandarim engana muito: são quatro possibilidades diferentes. O exemplo clássico que é dado é o do Ma. Má, em que o som do “a” cresce, quer dizer cânhamo. Já mà, em que ele decai abruptamente, ralhar. Por sua vez, mă, em que há um balanço, começando alto, descendo e depois subindo novamente, quer dizer “cavalo”. Por fim, mā, em que o som permanece alto sempre, é mãe. O último "ma", como se vê no parágrafo anterior, é uma partícula interrogativa. Cuidado, então, para não pedir, sem querer, para fumar ou cavalgar uma mãe.

Voltando à comida. Segundo o "Lonely planet", há quatro grandes “cozinhas” na China, que representam os quatro pontos cardeais do país. Cada um com suas especiarias, seus pratos principais, suas carnes prediletas. Em Beijing, predomina a culinária do norte. E o seu prato principal é, inegavelmente, o pato laqueado.

Claro que, após quase uma semana aqui, eu já comi uma vez o pato, mas não é sobre a pobre ave que fica horas no forno especial para ficar com a casca que lembra a nossa pururuca que eu quero focar aqui. Deixo isso para quando for visitar o famoso pato de 1406: o restaurante que faz a mesma receita desde o ano em questão.

Nem mesmo sobre os Dim Sum do Duyichu, um restaurante que fica numa área completamente turística [me disseram que parece a Epcot Center – e parece mesmo], mas que faz dumplings [pequenas massas de trigo com recheios variados que são fervidos dentro de caixas de bambu em vapor] tão maravilhosos e variados que, reza a lenda, o imperador Qianlong, da dinastia Qing, no século XVIII, se disfarçava de plebeu para poder provar suas maravilhas. São ótimas, as bolinhas, mesmo, mas não vou tentar aqui ser crítico culinário. Hoje, não.

Queria falar – ou tentar falar – sobre o que representa a comida para os chineses. Claro que eles têm McDonalds e Burguer King. É certo que eles comem comida tailandesa e italiana. Você pode ver gente tomando café ou bebendo coca-cola. Mas é inegável a ligação dos chineses com a sua comida. É mais que um patrimônio. É um laço invisível – e delicioso.

Ir jantar com chineses é certeza de se esbaldar. A quantidade e a diversidade de pratos que se pede impressiona até os maiores comilões, como eu. A mesa mais característica é aquela com um tampo de vidro no meio, em que você pode rodar os pratos por cima. Aí, vale tudo: língua de pato, pata de rã, orelha de porco. Ou pratos menos exóticos, a princípio: como um peixe com um molho que deixa a língua dormente que nem jambu. Ou o frango que parecia xadrez, mas era picante e ligeiramente doce. Ou bambu, que lembrou o gosto de palmito. Ou diferentes tipos de preparo de tofu. Você roda e vai provando e repetindo de tudo.

Algo que se percebe rápido: além de gosto, comida é costume, hábito. Por que os americanos almoçam um sanduíche e jantam cedo? Por que cariocas gostam das feijoadas às sextas e paulistas às quartas [é quarta, né?]? Por que chineses não tem nojo de nenhuma parte dos animais e comem até as coisas mais impensáveis – para nós? Todas essas questões podem ter tido uma explicação inicial [os americanos não querem perder tempo no almoço, os cariocas já emendam o almoço da sexta, os chineses passaram por muitas privações, etc.], e que muitas vezes não fazem mais tanto sentido – acho difícil um carioca normal conseguir emendar todas as sextas, por exemplo – mas o hábito já está entranhado.

Mas mesmo os hábitos mais entranhados podem passar por uma certa padronização - para não usar a palavra da moda, goumertização. Hoje, o carioca [e aposto que o paulista também] quase nunca encara uma comida um pouco mais pesada, fora dos padrões ditos saudáveis. A feijoada quase sempre é magra. Ninguém mais come pé ou rabo de porco na feijoada. Rabada virou prato exótico. Buchada, então...

A comida fica cada vez mais padronizada, igual. Não há muito mais diferença entre os lugares. Há uma pasteurização, uma tentativa de higienização. Mesmo assim, é de se notar que, como nação, só engordamos nos últimos anos.

Na China, porém, ao menos na comida, eles não se renderam - ainda. Mesmo nessa área completamente ocidentalizada, a quantidade de restaurantes chineses em que os menus só têm informação em mandarim e em que os atendentes também não falam nada além da nobre língua da etnia han é enorme. E dá-lhe barriga de porco, gorduras variadas, peles crocantes. Tudo bem pesado. Coincidência, ou não, ainda não vi ninguém obeso aqui.

Talvez seja o metabolismo. Talvez seja as práticas de atividade física. Seja genótipo ou fenótipo, suspeito que em poucas décadas, essa China esbelta vai ficar para trás. Quando o Ocidente mostra as suas armas cada vez mais pesadas [sedentarismo, estresse, trabalho excessivo], não sei se há como resistir totalmente intacto.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

CHINANEWS: No topo de Pequim

Lembram quando eu falei que este bairro aqui era chique para padrões ocidentais, mas que tinha ainda lojas que eram consideradas populares em outros lugares do mundo? Já tenho outra teoria.

Ontem fomos a um bar no topo do prédio que, se eu entendi bem, é o mais alto de Pequim, com 80 andares. O lugar era chique para qualquer padrão do mundo. O nível de frescura era alto. Só não era mais alto que os seus preços. Para dar o tom: havia uma seleção de uísques escoceses de edições especiais cujos preços passavam dos R$ 5 mil. A Coca-cola custava algo como R$ 25. Uma dose do single malte mais barata: R$ 40. A Duvel, curiosa e comparativamente, estava barata para os [altos] padrões brasileiros: R$ 37. E não é porque eles têm uma boa relação com a Bélgica ou com o fabricante da cerveja: a Heineken estava R$ 30. É porque pagamos muito caro, muito caro, pela endiabrada loura no Brasil. [Mas antes de acharem que eu ganhei na mega-sena: não, eu não tomei nem água da bica no lugar.]

Essa era a porta da entrada do hotel que serve de apoio para o bar
No caminho para o lugar, quase fomos atropelados por um Ferrari e pude comprar cinco bombadas bananas e uma pêra vitaminada por 20 yuan, ou cerca de R$10, na rua, numa versão local da carrocinha de cachorro-quente [quando eu entreguei as duas notas de 1 yuan, mal interpretando o “v” dos dedos da vendedora, ela não fez nada além de rir de mim]; também vimos hotéis com inumeráveis estrelas e lustres pesadíssimos, ao lado de jovens executivos agachados de cócoras [depois escrevo minha teoria sobre essa posição]; ou ainda uma jovem da área de tecnologia vindo de rickshaw guiado por um típico malandro da Lapa versão pequinesa. Isto é: o confronto entre as múltiplas Chinas acontece, e muito, mesmo na ilha da fantasia.

O caso das marcas populares se poderia explicar assim. Prossigo.

Como todo mundo sabe, fui criado na aprazível e clima-de-montanha localidade de Nova Iguaçu. Quando nasci tal benevolente cidade ainda vivia longe das [pigarro para limpar a garganta] benesses da modernidade. Em resumo: não tinha shopping. Em outras palavras: Não tinha qualquer elemento que pudesse identificar a cidade com o Ocidente mais capitalista. Em mais outras palavras: não tinha sequer um McDonald’s.

Quando a loja do McDonald’s do primeiro shopping da cidade foi inaugurada, aconteceu o esperado: a procura foi tão grande que o pão acabou. As pessoas faziam filas imensas para pedir o dois-hambúrgueres-alface-queijo-molho-especial-cebola-e-picles-num-pão-de-gergelim. Comer o Big Mac era a certeza de entrar num mundo de privilegiados. Fazer parte de um grupo “diferenciado”. Era ser um tipo de elite. Era, enfim, ser moderno.

O McDonald’s, entretanto, é uma lanchonete extremamente popular em qualquer país que dita as regras para o restante do planeta do que é moderno ou não. Mesmo no Brasil, esse afã pela “novidade” do fast food diminuiu consideravelmente, em cidades maiores. Mesmo Nova Iguaçu já se tornou demasiadamente “moderna”.

O resultado disso é claro. Lá, engarrafamentos bizarros que travam a cidade e transformam o pedestre em um alienígena. Aqui, uma geração de chineses de garotos e garotas que trabalha até 20 horas por dia, dorme muitas vezes nos seus próprios postos, e nem tem tempo de gastar o [comparativamente com os países que ditam as regras] parco salário que recebem, quiçá ter alguma vida.

O Ocidente repete seus símbolos: carro, Coca-Cola, trabalho.