sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nietzschianismo

Buda não seria budista, Cristo não seria cristão, Nietzsche não seria nietzschiano. Os três tiveram suas obras extremamente reinterpretadas por seguidores, fieis, estudiosos, que, após a morte dos patronos, disputaram a hegemonia de ser o portador desta ou daquela verdade. E, acredito, nos três casos, eles jamais seguiriam um guru, ou uma receita de bolo que dissesse o que seria bom, qual seria o caminho a trilhar. Mas a verdade é que eles criaram formas de pensar que influenciaram  - e influenciam - gerações, séculos, milênios.

O caso de Nietzsche é o de menor impacto, obviamente. Mas é curioso que uma leitura, não necessariamente uma leitura no sentido mais estrito do termo, mas uma leitura de suas propostas seja a voz dominante no momento atual. Muitíssimo resumidamente, ele foi o cara que pendurou a placa na parede dizendo que Deus tinha morrido. E que, com isso, se inaugurava a era do além-do-homem, que seguia simplesmente a sua vontade de potência, e não mais um código de condutas. Ou seja, numa interpretação canhestra, ele inaugurou [ou anunciou, ou percebeu] a era da individualidade extrema.

Reparem, não foi Nietzsche quem matou Deus. O bigodudo apenas percebeu que Ele tinha sido morto, e quem o havia matado foram os homens."O louco então gritou: 'Para onde foi Deus? o que vos direi! Nós o matamos! Vós e eu! Somos nós, nós todos, os assassinos!'", como o próprio escreve lá no mais que citado aforismo d'"A Gaia ciência". Mas, como se vê no texto, o louco fica, com o perdão da redundância, louco com a morte de Deus. Como assim? Como matamos o Cara? Ou seja, Nietzsche não era a favor, em tese, da morte de Deus, ele era a favor da destruição completa da forma de pensar que se estabeleceu a partir do Deus judaico-cristão. Ou seja, Nietzsche, além de não ser nietzschiano, não era também cristão.

O alemão percebe, porém, que, com a morte do Cara, ou seja, com a perda de importância que esses códigos criados a partir de um ser invisível que sabe tudo, está em todos os lugares e pode tudo, seria provável que a humanidade, tão acostumada a ser mandada, caísse num imenso buraco, num vazio extremo, num luto. Era o que ele chamava de niilismo. E ele imaginava que alguns, entre todos, conseguiriam sair do buraco, exatamente porque seguiriam as suas vontades, os seu quereres, à medida do possível. Era a vontade de potência.

O que se deu com isso, porém? Com a morte de um grande ícone, que unia a todos, um grande fundo, que ultrapassava os limites da pessoa física, algo que nos fazia, de alguma maneira, iguais, apesar de todas as nossas diferenças, outros elementos iriam entrar no lugar Dele para substituí-lo. Daí, as paixões avassaladoras dos ingênuos, o capitalismo selvagem dos inescrupulosos, as utopias igualitárias dos idealistas. A lista é grande, mas o raciocínio é o mesmo: não há mais um sentimento, algo que envolva toda a humanidade em conjunto. Ou melhor, até pode haver, mas ninguém consegue enxergar o óbvio.

O caminho seguiu e esses deuses menores foram se fragmentando, mais e mais, à medida que o tempo passou, em direção ao que se vê hoje: uma sociedade inteira de indivíduos que quase não dividem qualquer sentimento em comum. Isso é um problema em si? Não, não necessariamente, mas o que se viu, como consequência dessa individualização extrema foi um processo de perda da capacidade humana. Nos tornamos, cada vez mais, outra coisa que não o humano que, talvez, nunca fomos, mas sempre imaginamos. Humanos são aqueles que se emocionam, ficam verdadeiramente felizes, tristes, chateados, ansiosos. Somos anestesiados por uma série de medicamentos, não só os de tarja preta, e perdemos a vontade. Exatamente a vontade. Ironia do destino, que nos levou a um destino irônico.

Daí, talvez, se encaixe o raciocínio de Heidegger, quando ele fala que só um Deus pode nos salvar. Claro que não um Deus cristão, alguém que manda e desmanda. Mas um sentimento que nos ultrapassasse e nos unisse. Que demonstrasse que, de alguma maneira, por mais que temos vontades individuais, que explodem a todos os momentos, nos direcionando para lugares em que nem sempre somos convidados, temos algo que nos faz igual. Humanidade? O fato de termos vontade? O que será? 

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