sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O primata assassino

A tal da teoria do "primata assassino", chamada também de "naked ape", me lembra - ou lembra por si só - uma frase muito repetida, algumas vezes fora de contexto, outras, trocando completamente o seu sentido, mas que é defendida pelos que têm medo de uma vida mais livre: "Se deus não existe, tudo é possível".

Escreve Ciro Flamarion Cardoso em seu artigo "Por que os homens agem como agem?" [leitura aqui e sobre o qual eu já falei um pouco aqui] que essa teoria do "macaco nu" foi bastante divulgada num período de acirramento de posições, auge da guerra fria, em um ambiente norte-americano, quase como uma justificativa das violências praticada pelas nações. Como se argumentasse que o equilíbrio entre os países era mantido "unicamente no 'terror das armas'" [anota Ciro, citando Raymond Dart, o paleontólogo sul-africano que conseguiu popularizar a ideia do "primata assassino"]. Segundo essa teoria, a "agressão e o militarismo são inerentes, naturais e inevitáveis", exemplifica Ciro.


Ciro explica que "devido à leitura aprovadora do primeiro livro de Ardrey [um escritor, não cientista, que defendia essa teoria] por Arthur C. Clarke, a noção do 'primata assassino' serviu para organizar a parte inicial de um dos filmes mais influentes da década de 1960: '2001: uma odisseia no espaço' [1968], com roteiro de Clarke e direção de Stanley Kubrick [...]".

Não concordo com isso. Não concordo porque, como disse acima, me lembra a citação lá de cima de Dostoiévski, que, para mim, é herança da tradição cristã, de cerceamento da liberdade. Pelo que eu sei, a frase, como ela ficou famosa, jamais foi escrita ipsis litteris na obra do russo. Mas o tema da necessidade de um deus, de algo que nos controle, que seja um juiz universal, permeia "Os irmãos Karamazov", principalmente ao redor do personagem Ivan Fyodorovich Karamazov, também chamado de Vânia, e que na minha péssima tradução é nomeado de Ivã. Ele é o irmão do meio [oficialmente], inteligente, racionalista e ateu. É dele, por exemplo, o poema "O grande inquisidor" - e você pode imaginar quem seja esse sujeito grande.

Um trecho interessante sobre a necessidade de um deus é o diálogo entre os outros dois irmãos, que na minha tradução são chamados de Mítia, o sensualista irmão mais velho, e Aliócha, o adorável e provável protagonista da obra - além de seminarista. Em certo momento, Aliócha, que [sem fazer spoiler] está em apuros, pergunta: "Como viverei sob a terra sem Deus?" Para, logo em seguida, ainda em torpor fazer outra pergunta: "Que fazer se Deus não existe?" Para tentar responder: "Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem!". Só para cair, novamente, em outra dúvida: "Somente, como será ele virtuoso sem Deus? Pergunto a mim mesmo. Com efeito, a quem amará o homem então?" Lembrando uma discussão com o colega seminarista Rakitin, Aliócha o acusa: "'Tu mesmo, não acreditando em Deus, elevarás o preço da carne se houver oportunidade, e ganharás 1 rublo em vez de 1 copeque'". Na dúvida, pergunta ao irmão: O que é virtude? É coisa relativa? E lembra de uma outra questão feita ao outro irmão, "Ivã", "Então, tudo é permitido?"

Em outro trecho interessante sobre o assunto, "Ivã" conversa com Smierdiákov, o provável filho ilegítimo do pai Fiodor, cujo nome quer dizer o filho da fedorenta, e que trabalha na casa dos Karamazov, além de ser amigo de "Ivã", com quem compartilha do ateísmo - e que está envolvido no mesmo apuro de Aliócha. Copio o trecho inteiro aqui, com Smierdiákov sendo o primeiro a falar:
— [...] Foi o senhor quem, com efeito, me ensinou isso e muitas vezes explicou-o: se Deus não existe, não há virtude e ela é inútil. Raciocinei assim.
— Chegaste a isso sozinho? — perguntou Ivã, com um sorriso constrangido.
— Sob a influência do senhor.
— Então tu crês em Deus, agora, pois que entregas o dinheiro?
— Não, não creio nele — murmurou Smierdiákov.
— Por que então o entregas?
— Deixe isso! — cortou Smierdiákov num gesto de lassidão. — O senhor mesmo repetia então que tudo é permitido. Por que está tão inquieto agora? Quer mesmo denunciar-se? Mas não há perigo! O senhor não irá! — afirmou ele, categórico. 
Geralmente essa necessidade de um controlador universal se dá pelo raciocínio de que o[s] homem[ns] precisa[m] de instituições - ou deuses, no dizer de Nietzsche - para poder domar, controlar seus instintos. Instintos esses que seriam assassinos. Quantas vezes você já não ouviu que se fôssemos fazer tudo o que queremos acabaríamos nos matando? Como se a primeira coisa que quiséssemos fazer fosse sair pelas ruas atirando uns nos outros. Como se houvesse, como dito lá em cima, um sentimento anterior, adormecido, de assassino - do primata assassino - e que as instituições controlassem. Quando, na verdade, isso não necessariamente aconteceria.

Qualquer afirmação sobre esse caso, sobre esse comportamento, me parece, na hipótese mais pessimista em relação à humanidade, uma generalização. Como se todos agissem de maneira igual. E de maneira igualmente cruel, egoísta, ignorando o outro, as necessidades dos semelhantes. Como Aliócha exemplifica, que, sem deus para controlá-lo, o colega seminarista logo aumentaria o preço da carne - não deve ser à toa que se usa a expressão "deus-mercado" [curiosa essa citação aqui]. É uma hipótese tão forte - ou fraca - como qualquer outra. Inclusive igual aquela que diz exatamente o seu oposto: que viveríamos muito melhor, em paz mundial, sem qualquer preconceito ou perseguições, sem as instituições.

Mas por que ser tão extremista e se ater a apenas uma posição?

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