sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Pioneiro à la Bangu

[Fotos originais e primeira versão de uma reportagem publicada neste mês na "Piauí", após uma edição profunda que a tornou muito mais elegante.]

Estátua incompleta de Donohoe
Futebol, samba, moda, gatos e Bangu. Essas podem ser consideradas, sem ordem, as grandes paixões do artista Clécio Régis. Tudo em sua fábrica de cenografia no bairro da Zona Oeste carioca tem ligação com esses pilares. Um quadro no canto do escritório romantiza a fábrica de tecidos que, no final do século XIX, transformou aquela região de areal em uma espécie de república livre, quase independente do restante do Rio. Em todos os lugares gatos descansam ou passeiam à procura de um outro lugar para repousar. Sobre a mesa, a estátua de Nossa Senhora da Aparecida, protegida pelo escudo do Bangu Atlético Clube.

“O time de futebol é maior que religião. A minha maior emoção é ver o Bangu entrar em campo. Porque está 0 x 0. Depois, não sei”, conta ele que fez questão de emoldurar os ingressos das partidas a que assistiu na segunda divisão do campeonato carioca, após o time ter sido rebaixado no ano do seu centenário, em 2004. “O Bangu foi campeão do mundo em 1960”, tenta contrapor, fazendo menção à vitória no International soccer league.

Clécio é um homem de 53 que parece uns dez anos mais novo. É empolgado, vivo, inquieto, hiperativo. Seu raciocínio vai de um lado para outro, fazendo com que ele esqueça várias vezes o fio da meada. Diz que tentou estudar moda, artes plásticas, mas acabou virando “artista na prática”. Suas escolas foram a TV Globo, onde ainda presta serviços, e as de samba, para onde também faz trabalhos.

“Sou chamado de o artesão da Sapucaí”, conta, procurando a prova onde estaria o epiteto, sem sucesso.

O artista e empresário parece estar sempre em busca de um projeto para apoiar. Já produziu exposições sobre futebol e moda no shopping de Bangu, onde funcionava a fábrica. Ou o Grêmio Literário José Mauro de Vasconcellos, considerado como um museu do bairro, que homenageia o autor de “Meu pé de laranja lima”, nascido em Bangu.

A última iniciativa de Clécio [talvez quando este texto for publicado já será a penúltima] é a tentativa de homenagear o homem que é, na opinião dos banguenses, o responsável por trazer o futebol para o Brasil: Thomas Donohoe. De acordo com os pesquisadores locais, Donohoe chegou ao Brasil em 21 de maio de 1894, e botou a bola para rolar antes de Charles Miller, o “pai” oficial do futebol brasileiro. Clécio já construiu uma estátua de mais de quatro metros de Donohoe, com uniforme de época e feições em detalhes, e tem planos de colocá-la em um espaço público. O local já foi escolhido, será na praça Thomas Donohoe, em frente ao estádio do Bangu. Faltam agora os ajustes finais: a reconstrução do estádio e a recriação da praça.

“Tive essa ideia”, conta Benevenuto Rovere, o seu Beto, presidente do museu de Bangu, “quando estava assistindo à corrida de São Silvestre, como faço todos os anos, e o jornalista falou: 'os atletas passam agora em frente à praça Charles Miller, o pioneiro do futebol no Brasil'. As pessoas não sabem que o pioneiro é o seu Danau!”, exalta-se ele, lembrando da maneira carinhosa como Donohoe é chamado em Bangu. “No dia 2, eu me reuni com o Clécio e ele falou que iria fazer a estátua.”
Clécio e a sua criação

Os dois se baseiam na tradição oral de Bangu, que sempre deu a Donohoe o posto de primeiro homem a trazer o futebol para o Brasil, e nas pesquisas feitas pelo jornalista Carlos Molinari, outro torcedor doente do Bangu. No seu livro-bíblia “Nós é que somos banguenses”, ele se propôs a contar, ano a ano, a trajetória do seu time.

O primeiro capítulo da monumental obra começa antes da fundação do clube, em 1904, e é dedicado praticamente apenas a Donohoe. De acordo com o texto, o escocês, nascido a 25 de janeiro de 1863 na vila industrial de Busby, a 8 quilômetros de Glasgow, se casou em 1890 com Elizabeth Montague, e veio ao Brasil para trabalhar na fábrica de tecidos que estava sendo montada em Bangu. A esposa teria trazido a bola para o que seria a primeira partida organizada em solo nacional, em setembro de 1894. Antes, portanto, da primeira partida oficial de Charles Miller, em abril do outro ano:
No domingo pela manhã, já era possível ver o sr. Donohoe arrumando uma área livre (...), de preferência bem nivelada (...) e fincando quatro estacas, duas de cada lado da várzea, formando assim as traves. Quem passasse pelo local naquela manhã poderia imaginar que o escocês estivesse tentando construir alguma coisa. À tarde, porém, devem ter pensado que todos os técnicos britânicos enlouqueceram. Donohoe chamou de casa em casa todos os seus companheiros dos velhos tempos e um grupo composto de aproximadamente dez homens apareceu nas proximidades do terreno para estrearem a bola nova e matarem a saudade do tão salutar jogo que eles haviam deixado para trás na Inglaterra.
Como o texto não demonstra as suas fontes, fica a dúvida, porém: como é que Molinari sabe tantos e tamanhos detalhes da vida de Donohoe?

“Através dos livros do Bangu é possível determinar onde morava. A rua exata, o número. Onde seu filho foi morar depois de casado, a profissão do filho. Fora isso, temos rastros dele quando há alguma cerimônia na fábrica Bangu e ele é citado como um dos mestres de seção, participando dos almoços, das recepções que chefes de estado tinham quando iam até o estabelecimento fabril”, explicou por email Molinari, admitindo, porém, que deu uma “romanceada” na história. “Entrar na psicologia do personagem foi a fórmula que eu encontrei para que o texto ficasse atrativo aos leitores.”

Sem papel e sem testemunha, esse pioneirismo, claro, é contestado. Há relatos, mais ou menos nebulosos, de outros bate-bolas por todo o país pré-Miller. Marinheiros que aportavam nas costas brasileiras e aproveitavam a folga para jogar uma pelada nas praias. Ou um grupo de padre jesuítas no interior de São Paulo que ensinou a prática para os estudantes de um colégio.

“A brincadeira de chutar uma bola existe há mais de mil anos”, argumenta John Mills, biógrafo do atualmente aceito pioneiro do futebol. “Charles Miller foi o primeiro a trazer um livro de regras e organizar uma partida de 11 contra 11”, defende.

Segundo a opinião de Pedro Sotero, diretor do Museu do Futebol, e do sociólogo do esporte Ronaldo Helal, Miller teria institucionalizado a prática do esporte futebol. Helal sugere ainda um passo além. Ele considera que mais importante do que descobrirmos a data ou quem foi o pioneiro, é pensarmos como nos relacionamos com esses “mitos fundadores”.

Longe do mundo acadêmico, Clécio está mais perto é do refrão de um dos sambas mais famosos da Mocidade Independente de Padre Miguel, por acaso, a escola da região: “sonhar não custa nada / o meu sonho é tão real”.

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