segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A imprecisão do viver, segundo Fernando Pessoa

Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras regiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si-próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.

"Fernando Pessoa e outros pessoas" é uma
bela HQ desenhada pelo Guazzelli que tenta
emoldurar alguns poemas e trechos do poeta
português dentro de sua Lisboa querida.
Nessa famosa passagem, Fernando Pessoa [ou eu deveria dizer Bernardo Soares?] em seu "Livro do Desassossego" [que eu aconselho ser lido em forma de "minutos da sabedoria"], chega àquela famosa conclusão do fim das utopias com a "morte de Deus". E ele, mais ingênua ou sabiamente que os nossos contemporâneos, sente a falta desse alicerce, desse fundamento, desse firmamento.

Ele sugere, por exemplo, que o fim é mais importante que os meios - e aí, talvez, podemos entortar um pouco o nosso nariz, num misto de dúvida com incredulidade, com pitadas de desgosto. E lembra que a fórmula supercitada de que "navegar é preciso, viver não é preciso" deve ser reproduzida - pelo ponto de vista dele - "na espécie dolorosa", ou seja, na interpretação mais dura e sem concessões. A vida realmente é algo completamente sem parâmetros, que não pode ser mapeada, traçada, antecipada, aprendida, sem que se viva ao mesmo tempo [que dilema!].

O que talvez possamos criticar é essa atitude diante da "fórmula": por que não ter um mapa é ruim? Que medo é esse do devir? Por que não podemos simplesmente deixar a vida / a sorte / a fortuna / a ventura aparecer? Por que não podemos deixar o vento soprar e nos deixar levar para onde quiser? Por que não podemos repetir um outro verso igualmente supercitado sobre o mar, de outro poeta, que talvez reconheça mais as nossas cores e sabores, que diz: "não sou eu quem me navega / quem me navega é o mar"?

Na verdade, o melhor seria encontrar o meio do caminho, não pseudobudista, estático. Mas que balança, como as ondas. E tentar descobrir - ao mesmo tempo que se vive - qual é o momento que se deve pegar no  timão, para se tentar domar o mar, e os outros, em que não adianta lutar contra a fúria de uma tormenta. É uma sabedoria que, acredito, só se aprende com a experiência.

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