quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

A batata quente e a terceirização da culpa

Lembro do dia em que morreu Renato Russo e o "Programa livre", então comandado por Serginho Groisman, reprisou a última gravação com a Legião Urbana. Era um programa recente, já pós-disco "O descobrimento do Brasil", que terminou com "Perfeição" enquanto subiam os créditos. Não acompanhei nem Renato nem a sua banda, mas ali em cima do palco ele não era mais um punk que perguntava que país era o nosso ou que reclamava da maneira como tratávamos os nossos índios. Era um sujeito melancólico, que tentou evitar cantar "Pais e filhos" porque lembrava aos presentes: era uma música sobre um suicídio. Como a plateia ignorou esse argumento - e, talvez, também o teor da música - ele teve que cantá-la.

A internet não é uma maravilha?

Mas o que ficou na minha cabeça mais claramente foi quando Renato confirmou a sua mudança de garoto enxaqueca para o homem que apenas não queria passar a batata quente para os outros. Ele até deu um exemplo: Você entra no ônibus e dá bom dia para a trocadora que, nervosa porque, sei lá, o marido brigou com ela, nem responde. Aí, a partir daquele momento, você também está de mau humor. E quando encontrar alguém, também pode contaminar outra pessoa. Ele dizia como esse comportamento era contagioso e nocivo e como ele não queria mais fazer parte disso. Talvez estivesse sendo otimista. Talvez estivesse prevendo sua morte em breve.

De toda forma, esse processo de tentar dividir com o próximo o seu problema, acontece tanto pelo lado das consequências - como o mau humor, a grosseria, as brigas desnecessárias - como das causas. Pegando o mesmo exemplo do ônibus, podemos ver como isso acontece.

Você vai pegar o ônibus com a trocadora mal humorada, mas ele não parou no ponto. Na verdade, você teve que sair correndo, e pegá-lo na segunda pista, ou seja, além de cometer uma infração, atrapalhou ainda mais o trânsito e quase foi atropelado, além de ter sido xingado pelo motorista do veículo que trafegava na pista do canto - geralmente um carro, que entrou ali para fugir do engarrafamento, e aproveitou para pegar um vácuo deixado pelos outros ônibus. Com o erro de cálculo, ele começa a xingar você, que está naquele momento específico atrapalhando o passar dele, como se você fosse o único culpado de todo o nó do trânsito.

O motorista parou o ônibus lá na segunda pista porque tinha uma fila - nada indiana, totalmente torta - de carros. Em número muito maior, provavelmente, que o necessário, caso a situação viária da cidade fosse planejada. Ele também parou lá longe porque tem um horário a cumprir, a chegar no ponto-final, já que o fiscal vai cobrá-lo, descontar do fim do mês, tirar aquela bonificação que pagaria a camisa do time oficial, caso se atrase. Mas, além disso, além de ter que cumprir horário, o motorista deve atingir uma cota de passageiros, uma meta por cada viagem, independente de gratuidades em geral - daí, ele evita velhinhos, por exemplo.

Isso porque o sistema de transporte é tratado como um sistema que tem que dar lucro - quando, na verdade, ele pode até dar lucro, mas deve, em primeiro lugar, servir ao público. E o sistema é assim porque a máquina pública não quer / não tem força política para mudar a forma de concessão, que já existe desde que o mundo é mundo. E não tem força política porque os empresários fazem lobby de todas as maneiras para que nada mude o que é, agora, desse jeito, completamente desigual para quem realmente precisa do transporte público.

Por outro lado, a trocadora está de mau humor porque está trabalhando mais do que aguenta. No calor. Ganhando pouco. E com um motorista que ela acha um chato e que não respeita os velhinhos. Isso tudo ela poderia engolir, porque tem que ter um emprego para sustentar as cinco bocas que tem em casa, frutos de três relacionamentos diferentes. O atual é um sujeito que só faz bicos - se fosse rico, seria freela, mas é pobre... -, de ajudante de obras, flanelinha, o que pintar. Mas ele bebe. Muito. Se sente degradado por conta disso, por não ter um emprego decente, por, na sua cabeça ainda essencialmente machista, ser sustentando pela mulher. Assim, reclama com ela, dia e noite, num eterno mimimi de autoflagelação e de como o mundo é injusto com ele.

Ou, com outro exemplo, igualmente triste, que Gil Castello Branco mostra em um artigo desta terça n'"O Globo", "As masmorras brasileiras":
Atualmente temos 514 mil presos, a quarta maior população carcerária do mundo. [...] No entanto, a capacidade máxima das 1.312 unidades prisionais brasileiras é de apenas 306 mil detentos, o que gera déficit de 208 mil vagas. Como cada vaga criada custa cerca de R$ 20 mil, o rombo é de R$ 4,2 bilhões. Essa situação seria atenuada caso o Judiciário fosse mais ágil, visto que 37% dos detentos são presos provisórios, com processos não julgados. Por outro lado, imaginem se fossem executados os 500 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos...
Além disso:
A manutenção dos presídios brasileiros — verdadeiras filiais do inferno — não é barata. Como 82% dos presos não trabalham, o ócio é subsidiado. O custo médio mensal para a manutenção de um preso em presídio comum é de R$ 1.500, chegando a R$ 4.500 em penitenciária de segurança máxima.
A culpa, como se vê, nunca é nossa. Como diria Sartre, o inferno sempre são os outros. Terceirizamos a nossa responsabilidade, acredito, até porque precisamos, por uma questão de sobrevivência. Como sugere o ditado, de que a corda sempre arrebenta no lado mais fraco, todo mundo que se sente fragilizado por alguma situação qualquer, faz de tudo para não segurar nesse cabo-de-guerra na hora da verdade. É justo, pessoalmente justo.

A sugestão é tentar não passar essa batata quente para o outro, o próximo, aquele do lado que não tem nada a ver com você. Não é evitar dividir os problemas que porventura aparecerem com os entes queridos, mas tentar não divulgar o mau humor de maneira generalizada. Na prática, isso é bem complicado, óbvio. Como, na hora do vamovê, você vai conseguir pensar com clareza se aquela pessoa com quem você está falando é ou não é a culpada do fato de você ter que fazer o que você está fazendo o mais rápido possível e sem erros? É difícil. Talvez, porém, ter isso em mente, em algum momento, seja o suficiente para já mudar, aos poucos a própria percepção da realidade. É apenas uma sugestão.

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