sábado, 3 de novembro de 2012

A animada trilha de Kassin

Apesar do clichê que é se começar um texto assim, tenho que recorrer ao óbvio: Kassin é um músico sui generis. Geralmente ele é apresentado como produtor, multi-instrumentista, alguém que passou por bandas e projetos tão diferentes como o Acabou la tequila, a Orquestra Imperial e o +2. Grupos que, apesar de conhecidos pelo pessoal que lê os cadernos culturais, jamais saiu do nicho - infelizmente - dos aficionados. Essa naturalidade para encarar a música, independente da sua origem, já o fez produzir um grande elenco que vai de Caetano e Jorge Mautner, passando por Los Hermanos, Adriana Calcanhotto, até Mallu Magalhães.

Em 2006, ele foi convidado para um trabalho que conseguiu ser diferente de tudo o que ele já tinha feito: produzir a trilha sonora do animê Michiko e Hatchin, que se passaria num país imaginário da América Latina, inspirado fortemente no Brasil [o dinheiro tem a cara do Real, por exemplo]. Juntou uns amigos, com quem trabalha sempre, e aceitou. O resultado, como não poderia deixar de ser, é excepcional.



Ontem, ele reuniu os comparsas novamente, cuja banda tem o psicodélico nome de "Magnética intergalática" e que conta com gente do nível do maestro, pianista e produtor Lincoln Olivetti, para se apresentar ao vivo no CopaFest, o festival de música instrumental que acontece há cinco anos no Copacabana Palace.

As músicas do desenho têm um groove único, mas que dá para perceber influências do maestro Moacir Santos, por exemplo. Kassin nem esconde isso, já que a primeira música do disco se chama "Coisa nº 11", como se fosse a décima-primeira faixa do famoso álbum desse monstro da música brasileira que, entre outros grandes méritos, foi professor de Baden Powell, João Donato e Sérgio Mendes. 

Aliás, o disco de Kassin segue, mais ou menos, essa mesma trilha, bebe dessa herança. Há bastante referência a Donato e Mendes, por exemplo, mas não para aí. É como se a atualizasse essa tradição, principalmente com os sons mais recentes, sem qualquer preconceito. Em alguns momentos, parece que estamos escutando uma big band de jazz, com um naipe potente de sopros. Em outras, é Tim Maia com seu suingue, mas sem sua voz. Outros, "Shaft" e toda a trilha blaxpoitation, como essa "Operação gafanhoto" aí de cima. Ainda há rock, blues. No disco, Roberto Carlos, samba. Samba-rock. Funk. As variações parecem infinitas. 

Em uma longa entrevista este ano para o Banda Desenhada, ele defende essa mudança constante de ponto-de-vista:
A parte do meu ofício que mais gosto é esta, a de ter a possibilidade de fazer com que todos os meus dias sejam diferentes. [...] pelo fato do meu trabalho de produtor possibilitar o envolvimento com diferentes sons todos os dias, acabava não me deixando ficar cansado. Ficaria muito entediado se tivesse que ser o artista Kassin todos os dias, cantando as minhas músicas, tocando guitarra, falando em toda apresentação “boa noite, que bom que vocês vieram”. Por mais que fosse a minha música, por mais que representasse a minha verdade, em algum ponto aquilo me entediaria. Hoje de manhã fui gravar o disco novo do Wilson das Neves. Acordei para uma gravação de samba. Sairei daqui para gravar uma trilha da HBO, com canções de reggae.   
E mais à frente:
Ninguém está preso a um único estilo musical. Se você está, pode ter certeza que está errado. Não é possível que outros sons e outras experiências não te afetem.
Em todos os momentos do show conseguimos quase visualizar as cenas para que tal peça foi imaginada. Uma perseguição. Um encontro amoroso. Uma música de fundo, sem muita interferência. Como se mostrasse que a música, nesse caso, cumprisse o papel de apenas acompanhar as imagens. Foi sugerido, em tom de brincadeira, que deveria ter tido um telão projetando o animê. Não precisava. A sugestão talvez tenha sido melhor.

Talvez Kassin seja sui generis porque, além de não ter preconceito com música, ele trabalha, em um mundo cada vez mais ególatra, em que se valoriza apenas o próprio umbigo, ele trabalha em conjunto, para o outro. Pensa nos parceiros em vez de querer apenas aparecer mais que os outros. É um músico dos músicos. E para os fãs de música.

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