segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Porque a vida não basta

Todas as vezes que Ferreira Gullar fala em eventos públicos que "a arte existe porque a vida não basta", eu fico impactado com o efeito dessa frase, mas não entendia exatamente o quê. Poderia ser interpretada como a arte ser maior que a vida, e que esta não era o suficiente para as vontades. Acho que ontem eu digeri essa frase por completo pela primeira vez, e posso me dar o luxo de acrescentar que ela não se aplica somente à arte, mas a todas as áreas similares do pensamento.

Ela - a frase - me explicou a "utilidade" da arte na sociedade em todos os tempos - e como falei, de áreas similares do pensamento, como a filosofia, a religião, os entorpecentes e outras - como vou tentar explicar adiante. Porque, se você pensar que a arte tem alguma importância para a vida de indivíduos que seguem adiante em comunhão, você está se enganando. A arte não serve para absolutamente nada, além de ser apreciada como arte. Ela pode até ter um componente antropológico, pedagógico, moralista, pode até tocar em outras áreas, mas ela, em si, não tem essa intenção. Ela é inútil por natureza. Por que, então, somos fascinados por ela? Porque a vida não basta.

Na minha interpretação, o que Gullar quer dizer com "vida" nessa frase é apenas ligado ao cotidiano mais simples, duro, de subsistência. Cada um, claro, sabe o que é completamente essencial para a sua vida, mas há um patamar razoavelmente único para todas as pessoas que podemos chamar de "vida", que é quando a sua razão age para nos mantermos vivos, e prosseguindo. Por alguma razão que não tenho uma explicação muito clara além das moralistas, os vivos querem se manter vivos. Não está óbvio, para mim, o motivo disso. Querer viver ou querer morrer são ações muito parecidas entre si, portanto é curioso que a imensa maioria das pessoas opte por viver e não morrer. Acredito que é nisso que a razão trabalha: para manter a máquina humana rodando, para seguir adiante.

Porém, quando estamos razoavelmente a salvos, quando estamos vivendo em uma situação de conforto mínimo, onde não somos ameaçados diretamente, onde não temos qualquer problema para seguir, a vida, essa vida dura e cotidiana, não é mais o bastante. Queremos mais. Nos sentimos vazios, sem sentido, nos sentimos perdidos e abandonados, nos sentimos caretas, sem graça, cinza, bege, entediados. Nesse momento, entra a arte.

A arte trabalha com outros elementos que não a razão. Ela não quer agradar, ela não busca o agrado, ela busca um sentimento que nos tire do chão, que nos leve para um lugar onde não frequentamos nos nossos dias comuns, ela nos entorta a cabeça, nos faz duvidar de tudo o que vivemos até o momento. Se você reparar, essas mesmas explicações podem ser aplicadas à religião. E à filosofia [por meios diversos, ressalvo]. E até para as experiências com entorpecentes. A vida, comum, não é o suficiente, deve-se procurar algo além da vida. Uma experiência que o faça desligar essa máquina da razão que segue adiante, ou sintonizar o pensamento em outro canal, que dê uma descarga elétrica e reanime o corpo para continuar. O que chamam de experiência estética não é diferente - na sua raiz - às outras experiências de suspensão.

O mistério, de certa forma, continua. Por que queremos mais, por que não nos contentamos com a vida? Por que, portanto, a vida não basta? Não tenho respostas para isso, e acredito que talvez nem as haja. Mas se alguém tentar explicar, sugiro começar pela explicação da sobrevivência. Se nos apegássemos apenas à "vida", no sentido de Gullar, de certa forma estacionaríamos, não nos modificaríamos, ficaríamos parados. E ficar parado, mesmo que metaforicamente, é o primeiro passo rumo à morte - e à "morte".

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