terça-feira, 15 de fevereiro de 2005

Assalto

Seu polícia, eu vou te contar tudo, não quero ir preso, deixa eu falar, por favor seu polícia, eu não sou culpado de nada. Foi tudo rápido, nem vi acontecer, não sei o que deu na minha cabeça, quando eu menos esperava, já estava tudo acabado, as pessoas já me olhavam. Ai meu Deus, eu... ainda... não tinha pensado nisso. Seu polícia, eu sou de São João, longe daqui, vim para a casa de uma tia minha que mora no morro de Botafogo, como é o nome dele? Dona Marta, isso. Eu vim passar uns dias, fiz algumas coisas erradas lá em São João, não, não seu polícia, não pense nessas coisas, foi uma namorada minha que me largou e eu não tava com cabeça para ficar lá não. Seu polícia, eu vou te contar tudinho, não prende eu não, eu não sou culpado de nada, tava só me defendendo, o moleque que começou.

Minha tia falou que era para eu pegar o ônibus lá na praia de Botafogo para dar uma volta. Ela não podia ir comigo porque tinha que lavar roupa, ela vive disso, mas eu poderia ver Copacabana, Ipanema, até aquela cidade da novela, Leblon, né? Peguei o busum, mas o dia tava estranho. Sabe, muita fumaça, tudo branco, não dava para ver nada. Copacabana tava vazia, só tinha uns sujeitos com roupas estranhas andando nas ruas. A trocadora disse que eram gringos que vieram passar as férias aqui. Seu polícia, calma, calma, não me bate não, eu vou falar sobre o que aconteceu, pára!, seu polícia, eu sou trabalhador, foi um acidente, ele que começou, eu vou te contar do assalto...

Eu tava sentado na janela, perto da trocadora, aliás, é muito estranho entrar pela frente. Lá em São João, a gente entra por trás e o trocador fica colada na porta. Tá, ai, tá bom, eu falo do roubo. O moleque subiu no ônibus, não tinha por que reparar nele, ele era um moleque normal, mas me chamou a atenção o jeito dele olhar para os outros. Parecia que ele tava procurando alguma coisa, tava preocupado, como se alguém tivesse perseguindo ele, não tava bem, tava nervoso. Acho que o erro dele foi fazer o ganho depois de passar pela roleta. Sei lá por que, deve de ter pensado em ficar longe do motorista.

Então ele passou da roleta e meteu a mão na máquina. Um 38 preto, feio para cacete. Cano fino, daqueles bem antigos que qualquer um consegue comprar por 20 merréis. Puxou o revólver e apontou para a trocadora. A gente estava no final de Copacabana. Fiquei nervoso e tentei olhar os outros passageiros. Algumas pessoas nem tinham reparado que o busum tava sendo assaltado. Tinha umas coroas que estavam conversando e não pararam. Porra, o moleque com a arma na mão, apontando para a trocadora, na minha cara, se errasse ia pegar ni mim e tinha gente que, sei lá, parecia, sabe, sabe, como é que se fala?, não tomava conhecimento do que acontecia ali na frente. Ah, seu polícia, eu fiquei puto, desculpa aí a palavra, mas eu fiquei puto. Aquele filho da puta querendo roubar, assim, na cara-de-pau. Não quero julgar o cara não, sei lá, talvez a família do cara tá passando fome, sei lá, mas assim, na minha frente? Eu nunca tinha visto um assalto assim, lá em São João não rola dessas coisas. O trafica não deixa ônibus ser assaltado. E o cara ali, com a arma na minha cara, eu não sabia o que fazer, nunca tinha sido assaltado na vida, os caras da comunidade lá não deixa os irmãos na mão não, a gente tem até um rap sobre isso... tá bom, seu polícia, eu conto o que aconteceu.

O moleque, ele devia ter a minha idade. Um pouco mais velho, eu acho. Mais magro. Mais fraco. Eu não pensei nisso na hora. Eu não pensei em nada na hora. Não sei como começou, não sei o que me levou a me levantar. Ele tava nervoso, eu também, eu vi aquela arma perto de mim, ele tava falando baixo, isso, tava falando baixo para a trocadora, disse: 'aí, trocadora, passa, passa tudo, o vale também', e a trocadora, tadinha, tava com pouco dinheiro e ficou nervosa, quase chorando e ele encostrou o cano do 38 na barriga dela, ficou um pouco acima de mim, parecia que ele não tinha me visto, sei lá por que, se eu esticasse o meu braço acertava ele, não precisava nem me levantar, era só dar uma porrada nele e ele ia parar, nem sei por que eu fiz isso, mas eu peguei no braço dele e levantei e empurrei o moleque e a gente foi até a roleta e eu dei uma cabeçada, tá vendo aqui ó, é sangue dele, comecei a dor soco na costela dele, eu tenho um primo que briga pra caralho, ele sempre diz que se tu der soco na costela dói pra cacete. Eu não sou de brigar, entende? Eu nunca briguei, ele tava ali, eu queria livrar a trocadora, achei na hora que ele não devia assaltar ninguém, não tenho muito motivo para isso não. Ai, ai, seu polícia, não é mentira não, eu só devo ter batido no baile, sabe, lado a, lado b? Não é mentira...

A gente tava na roleta, preso, eu segurava o braço dele, esse aqui, direito né?, para que ele não me atirasse, e dava umas porradas na costela dele, aí veio esse senhor que eu falei, um coroa, mas forte para caralho, um negão que tinha o cabelo quase todo branco, mas o braço do maluco, meu irmão, era dois do meu, eu dava cabeçada no moleque e dava soco, e ele não conseguia sair da roleta, e aí o coroa puxou a gente de uma vez só e a gente caiu no chão do ônibus e aí eu não sei o que aconteceu, acho que ele veio para cima de mim, a arma escorregou da mão dele, eu batia nele, ele tentava se livrar de mim, e ai a arma disparou, mas eu contiuei batendo nele. Só parei quando vi que ele não se mexia mais. No início não senti nada, mas logo em seguida fiquei bolado. A gente tava no chão do ônibus, eu empurrei ele e ele virou assim, de lado. Tava morto. A primeira coisa que eu pensei foi que eu ia ser conhecido, famoso, tinha salvado um ônibus de um ladrão, era um herói. Talvez até aparecesse na televisão. Na hora imaginei a minha mãe lá em São João assistindo à tevê e me vendo. Ela ia gostar de ter um filho herói...

Quando me levantei, todas as pessoas me olhavam, assustadas. Uma senhora, aquela escrota que eu falei que nem tinha reparado que o moleque tava no ônibus pra roubar, ela disse assim, não sei se perguntava ou afirmava: 'ele tá morto'. Sim, eu sabia que ele tava morto, mas ainda não tinha pensado nisso, e só quando eu vi as caras sérias ao meu redor, todo mundo olhando para o puto apagado no chão, que reparei que o ônibus tava parado, é que senti pela primeira vez mal. Subiu aqui assim, do estômago, um gosto ruim, uma queimação, fiquei meio enjoado, meio tonto, dei dois passos para trás e senti tudo rodar. Fiquei com medo de cair no chão e me apoiei num banco atrás de mim, que tinha uma velha que não deixou eu segurar no ferro e me empurrou e começou a me bater com a bolsa dela. Escorreguei e caí no chão. Escutei alguém falando: 'foi ele que matou o garoto', e não sabia de onde vinha a voz, tudo ficou escuro de repente, tava completamente bolado, tudo tava rodando, como quando a gente tá bêbado, só escutava as pessoas repetindo: 'foi ele, foi ele que matou o garoto, assassino'. Eu me arrastei até a trocadora, até a roleta, o coroa fortão se aproximou de mim e falou para as pessoas que o moleque ia roubar a gente, mas não adiantou, as velhas, assim da idade da minha avó, tavam gritando, um playboy de óculos escuros se levantou e disse que ia me meter a porrada, algumas pessoas falaram que eu não podia fugir, que era para chamar a polícia e então eu me assustei.

Ce sabe como é quando a PM vai no baile. A gente fica na parede, sendo revistado um montão de hora e só sai quando encontram alguma coisa. E a gente sempre toma porrada. Mesmo quando não tem culpa nenhuma, a gente toma, pelo menos, com a mão aberta assim ó, na cabeça, aqui do lado. Fiquei com medo de apanhar muito. Desespero mesmo, queria sair dali, as pessoas já estavam de pé, o playboy veio para cima de mim, só parou porque o coroa tava na minha frente e não saiu. As pessoas discutiam e eu tava tentando me levantar do chão. Não sei o que eles falavam, a trocadora também gritava, o motorista tava atrás de mim, todo mundo berrava no ônibus, algumas pessoas se empurravam, o coroa disse que ia meter a porrada no playboy, a coroa tava no celular, o motorista mandava alguém tomar no cu, a trocadora gritava com alguém e eu e o moleque morto no chão. Chegou uma hora que alguém puxou aquela trava da saída de emergência, não vi quem foi, mas aquilo caiu com tanta força que alguns vidros da janela quebraram. Tentei me arrastar até a parte da frente do ônibus e ia me levantar para sair pela porta quando alguém puxou o meu pé, não quis ver quem era porque queria sair dali e chutei, como se fosse um coice de cavalo. Seu polícia, o coice pegou na velinha, não sei como, e ela começou a sangrar. As pessoas ficaram mais malucas, acho que iam me bater para caralho, apareceu uma galera que não sei de onde veio, empurraram o coroa fortão para o lado e tentaram me pegar. Todo mundo tava louco, começaram a me bater, eu no chão, pedindo para parar, falando 'vocês tão me matando, vocês tão me matando...', mas ninguém parava. E foi então, que vocês chegaram...

Que isso, seu polícia, eu sou inocente, não preciso ir para a cadeia. O que é que minha mãe vai achar disso? Filho dela direito, que estuda, trabalha, na cadeia? Seu guarda, como assim, ai, como assim, a gente não vai para a delegacia? Seu guarda, não bate assim não, ai, eu não sou assassino, foi o moleque que começou, ai, é tudo verdade, seu guarda, eu não to inventando, é verdade... Tá bom, eu fico quieto, mas é verdade, o senhor vai me soltar? Seu polícia, seu guarda, desculpa, eu não faço mais isso, ai, pára, seu guarda, não me bate não, ai, ai, pára, ai, não seu guarda, não dá um sumiço assim de mim não, ai, não seu guarda, a minha mãe, o que é que a minha mãe, não seu guarda, eu não sou vagabundo, eu trabalho, to acabando os estudos...

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